segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Digressão sentimental acerca da privatização do sistema Telebrás - homenagem ao retorno da Telebrás

Ora, afinal a vida é um bruto romance e nós vivemos folhetins sem o saber”.
Sweet home, Carlos Drummond de Andrade.

Em algum dia de 1998 o presidente da Bolsa de Valores de São Paulo batia pela última vez o martelo. A última empresa desmembrada do antigo sistema Telebrás acabara de ser vendida. Entre 1997 e 1998, privatizando empresas de energia elétrica e telecomunicações, foi embolsado pelo Tesouro Nacional quarenta e um bilhões de dólares. Quatro consórcios estrangeiros financiados pelo BNDES – “e não verás país nenhum” – arremataram mais esse espólio da herança getulista – “A eletrobrás foi obstaculizada até o desespero(...) Ao ódio respondo com o perdão” – e do nacional desenvolvimentismo. Encerrado mais esse assunto, mesmo para os jornais, alguém se perguntaria se o que sobra a ser dito não é simplesmente falta de algum assunto, tagarelice. Vamos com calma. Antes de ser privatizado, o sistema submeteu-se a uma drástica correção de tarifas que atacou o usuário por todos os lados: reajuste nominal de tarifas, redução do tempo para faturamento do pulso telefônico, reajuste brutal da assinatura básica da linha telefônica. Desse modo, que se fale menos e que se fale baixo, mais do que isso incomoda.
O fato é que dois meses após tal privatização meu telefone branco aderiu a um silencio constrangedor. Não vou entrar nos detalhes e revelar publicamente meu déficit doméstico e minhas dificuldades de solvência, que, sendo de ordem privada, e eu, pessoa física, a ninguém interessa, salvo às estatísticas de inadimplência. Vou apenas descrever essa situação tão sem sentido quanto trivial: em débito, acabo descredenciado pelo sistema, assim reza o contrato: para mim, entretanto, os desdobramentos tiveram um alcance que não entra em nenhuma estatística. E uma vez que não conheço nem o presidente, nem o leiloeiro, sequer o presidente do BNDES, certamente não esperaria deles um telefonema a explicar-me o aumento de mais de cem por cento na tarifa telefônica, preparando, evidentemente, a empresa para os novos tempos (e que tempo são esses?) e para os novos donos. Aliás, uma vez que o deputado eleito com meu voto é de oposição (por definição) nem com ele interessaria, a esses senhores, uma conversa. Entretanto, se contasse que esperei em vão um telefonema, bem sabedor de quanto isso era vão, o que só se explica por conta da cegueira do amor, um telefonema tão aguardado quanto fora a urgência do negócio – e exigisse certos direitos não prescritos na letra da lei – o espanto seria geral. Sem medo do ridículo sigo em frente. Por que, poderia se perguntar o telespectador do jornal da noite, tais direitos teriam cabimento?; ao que responderia juntando uma coisa com a outra, isto é, as vicissitudes de um amor mal amado e a contribuição tucana para o capitalismo brasileiro – não muito mais que uma gigantesca privatização de riqueza e recomposição patrimonial – : meu tempo é o presente. O amor é cego, mudo e, em grande medida, burro. Neste caso, não é mal informado.
Nunca sendo pessoal esse tipo de retaliação, afinal, que planejamento sobreviveria a condescendências dessa ordem, só me restara esperar pelo impossível, no amor e na política, o que, por definição, não acontece. Como a mocinha não me ligou, como fiquei duas semanas em débito com a prestadora de serviço, como não ouvi mais sua voz, calaram-se para mim todos os telefones. (Todas as mulheres resumidas nos esboços de uma única, que outro chamado poderia me interessar? – o amor é uma linha permanentemente ocupada). Há ainda outro agravante: se o início conturbado (início?) do serviço privatizado funcionasse apenas contra mim: encontrou (será) conversa melhor em linha cruzada ou depois de ligação completada veio fatídica mensagem (bem gravada): esqueça esse senhor, seguiu o conselho. Não sendo pontual com meus deveres de usuário – mas não apenas eu, também a prestadora do serviço – perdi a boa oportunidade que no amor é essencial e crucial e nunca mais me curei da dor que é ser mal amado, tão pouco amado segundo os critérios de meu imenso coração: a isso também chamam fortuna. E custa-me acreditar que a Embratel, com seu imbatível sorriso feminino, não saiba o que é sofrer de amor – quando se perde a ilusão deve-se sepultar o coração.
***
Em 1961 Brasília é inaugurada. Uma parcela dos cronistas de fim de tarde, hoje associados a filósofos, jurisconsultos, diplomatas e intelectuais engajados, versados em muitas e variadas ciências, insistem, entre outras coisas, em culpar a audácia da sua construção nossas mazelas pretéritas e futuras ao mesmo tempo em que consideram as mazelas presentes pequenos desvios naturais contra o que pouco se pode fazer, senão retomar um velho programa: esclarecimento e boa vontade. É de supor, afinal, que não somos tão somente infelizes mas também obscurantistas e teimosos – mais outro efeito colateral de nosso atraso material. (Que se diga, enfim, que marxistas somos todos, eles, nós e os outros). Do mesmo modo, um pequeno clube de senhores esclarecidos insiste em afirmar e reiterar o inevitável efeito inflacionário de nosso desenvolvimentismo tropical ao mesmo tempo em que desprezam a “megalomania” de uma capital-monumento: não são, entretanto, as piores tolices que essa terra já produziu, ainda que desde sempre tivéramos, mais que qualquer outro, a boa disposição ao esclarecimento e a tenacidade da razão prática, seu sucedâneo: “enquanto na metrópole um espesso véu vitoriano ainda recobria o interesse nu e cru do pagamento em dinheiro, numa longínqua sociedade colonial a exploração prosperava a céu aberto, direta e seca”. Assim, “marca, em quimbundo, se diz Karimu. Karimbo era o ferrete oficial de prata ou ferro esquentado na brasa com que se marcavam os negros no momento do embarque, no ato de cobrança dos direitos de exportação. Daí as palavras carimbo e carimbar. Dessa sorte, o substantivo e o verbo – só usados na língua portuguesa no Brasil – definindo as hierarquias, o escopo da propriedade, a validade dos documentos, a autoridade pública exercida pelo Império e pela República brasileira, derivam do gesto, do instrumento que imprimia chancela legal ao comércio de humanos. Da palavra que situa o momento preciso de reificação do africano”.
Brasília foi e passou, o Brasil seguiu em direção ao oeste (hoje Brasília é o maior marco da arquitetura moderna), numa época que crescíamos a taxas de dez por cento ao ano, em média. Chega de Saudades. Passam-se duas décadas e o rosto do brasileiro esmaeceu-se num espelho opaco.
E se tudo fora um sonho, um sonho imenso, no Cerrado, no Planalto Central, sonho de um monumento ritmado e de um rosto feito de colagens geométricas – bossa nova, arte de vanguarda, e de repente, inteligência; sonhávamos dormindo em quê berço esplêndido?

P.S. de 16 de novembro de 1999.
Os jornais avisam que uma parte significativa dos quarenta e um bilhões que o estado brasileiro arrecadou com as privatizações vai retornar ao bolso dos compradores sob a forma de redução no pagamento do Imposto de Renda.
Um exemplo talvez ilumine essa “modernidade”: vejamos a privatização das rodovias. A empresa que oferece o menor pedágio no leilão ganhava a concessão, tendo como contrapartida a obrigação de modernizar e manter a rodovia. Nada de novo. Eis, contudo, a originalidade: reparos e manutenção vêm sendo financiados com empréstimos do BNDES a juros subsidiados. O que seria uma atividade de risco (portanto, eventual fonte de lucro) se transforma em fonte de renda.
Compare-se isso com a máfia de fiscais em São Paulo. Vereadores malufistas cobravam ilegalmente dos camelôs uma propina para permitir a ocupação irregular de um espaço público: as calçadas. O que no caso das rodovias é legal e mediado, aqui é ilegal e imediato. Para um homem de visão, um leilão “público” resolveria tudo, já previsto naturalmente um empréstimo subsidiado para a construção de “barraquinhas”.
Em tempos como esse o amor é negócio de sociedades anônimas (Que amor resiste a um ataque especulativo?).

P.S. de 01 de janeiro de 2000.
“Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.
Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
Imensa e contraída como letra no muro
E só hoje presente”.

P.S. de 07 de fevereiro de 2006.
“É preciso que tudo isso seja belo. É preciso que súbito
Tenha-se a impressão de ver uma graça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora”.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Jean-Pierre Léaud: ator alucinado, por François Truffaut (trad. AOTC)


Há aqueles que amam a fantasia, há os que a detestam. Entre aqueles que detestam a fantasia, há os que fingem amar o cinema. Mas, se são questionados, você logo se dá conta que eles amam, sobretudo, o cinema documentário, aquele que é tão chato quanto as conferências dos exploradores na Sala Pleyel. Os que se afeiçoam ao documentário, se dignam, às vezes, ir ver ficção, mas logo se percebe que seu gosto os leva em direção as histórias realistas, bem situadas geograficamente, historicamente, sociologicamente. Como por acaso, essas histórias são frequentementes interpretadas por atores corpulentos, bem confiáveis já que seu peso os desculpa do que se poderia supor de leviano e ligeiro em atuar, segundo o espírito do público. Ninguém jamais critica esses atores pesados, sempre plausíveis como donos de bar, taxistas, funcionários públicos. Os fanáticos do verossímil concentram suas críticas nos atores magros, de bochechas vazias, descabelados, os atores bressonianos que sua timidez faz com que se exprimam como ventríloquos dolorosos. Contrariamente aos gordos bem situados, os atores magros não dissimulam seu medo nem um ligeiro tremor na voz, não são domadores, são indomáveis. Qual tentação se oferece, então, aos capachos que se tomam por leões de morder o calcanhar desses atores sonâmbulos!
Acabo de fazer o retrato de Jean-Pierre Léaud e de explicar por que ele não agrada a todo mundo e por que ele agrada tanto àqueles que ele agrada. Jean-Pierre Léaud é um ator anti-documentário, mesmo quando ele diz um simples 'bom dia', já mergulhamos na ficção, para não dizer na ficção científica. Antes da guerra, o público de quem a ouvido ainda não havia sido banalizado pela televisão, apreciava os atores especiais, de dicção marcante: adoravam o sotaque romeno de Popesco, os arrancos asmáticos de Louis Jouvet, a veemência alucinada de Robert Le Vigam.
Alucinado, a palavra é fraca. Jean-Pierre, filho natural de Goupi Tonkin, também secreta a plausabilidade e a verossimilhança, mas seu realismo é aquele dos sonhos.