sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Sonata para três cordas.

Sonata para três cordas.

As armas e os barões assinalados
Que, da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Tropabana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mas do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram
L.C.

Há dez meses volto a este texto e não o termino nem o descarto. Poderia também completar: nem o começo propriamente. Há uma única desculpa para ele, na forma de uma frase com a qual sonhei e pretendia semeá-la no meio de algum parágrafo, de modo a não dar muito na vista que tudo que o que escrevia devia estar na conta exclusiva dessa frase. Ocorre que a frase, de tão clara e nítida, ofusca e apaga todo o resto, me inibe e minha timidez dá as suas dez mil voltas e fico em permanente estado de rascunho.

Viajando a Porto Alegre com minha filha, veio-me não sei que frio na barriga, um susto morno: todo um mundo desconhecido se abriu para mim passando pelo km 210 da BR 101. É o que costumam chamar “sul do estado”, um sul ao sul do meu sul, e a vertigem me vem da arraigada crença da infância, segundo a qual o mundo terminara em Joinville – meu último e único sul, a máxima distância ao sul de mim mesmo. Em direção a Porto Alegre, o caminho por terra me traz assombros de navegador português. É meu périplo africano. (Adio meu objetivo final: a República Oriental do Uruguay). Explico-me. Todas as minha viagens a Porto Alegre feitas de avião roubaram-me a paisagem que, sem que soubesse, existia como a testemunha muda de uma outra viagem; se o avião economiza tempo, ele dispensa o olhar. Não há paisagem para o avião. Salvo uma ou outra aeromoça – em tempos de low cost –, tudo se ressume ao encosto da poltrona da frente, com o anúncio de mais uma novidade inútil e cara. De carro ou de ônibus, não se têm apenas todo o mistério da paisagem mas também o tempo da paisagem. A paisagem é uma forma de experimentar a permanência. Eu fiquei na paisagem. E me perdi. Como sou mais ou menos rigoroso como meus maus hábitos, resisto um pouco as aventuras e assim resisti a esta viagem, com todos os medos justificáveis de quem pensa com os preconceitos da infância. Mas no último verão, de tantas promessas não cumpridas, resolvi cumprir uma tentando me esquecer das outras, e estava um pouco decidido – o que, no meu caso, equivale a muita decisão – amparado em todas as razões fantásticas de um navegante português.
Talvez houvesse um império a conquistar, um outro continente, minhas índias ocidentais, ao sul do meu ocidente.
Passando assim, ao sul do sul, alguma coisa muda repentinamente: e como se refugiando e abrindo um espaço vazio de si mesmo, a Serra do Mar se ausenta, e o que era antes obstáculo e impedimento, escarpa e adversidade, se desfaz e surge a paisagem de horizontes e águas, planos de espelho e planícies úmidas de uma ausência marcante, lagunas, lagoas e areias e arroios e “é como se reparasse que de repente se abrisse um espaço entre o cais e navio e vem-me, não sei por quê, uma angústia recente, uma névoa de sentimentos de tristeza que brilha ao sol das minhas angústias reveladas, como a primeira janela onde a madrugada bate, e me envolve como uma recordação duma outra pessoa que fosse misteriosamente minha”. Outra viagem faço pela paisagem, descobrindo nela o que em mim não é mais serra ou montanha.
Mas não é tudo, e, diante de toda a nova paisagem, minha frase, sempre presente, escapa de mim mesmo, escorrega pelos meus dedos e se estica no horizonte daquelas planícies.
Faltava-me não sei o quê. Precisava ainda de outro modo e lugar para encontrar o tempo daquela frase e dizê-la com todas as letras. Nessas operações, nada é simples: jantando com um conhecido descubro algo que jamais vira: um amigo. Moramos na mesma casa por quase um ano, mas os morros das Perdizes, a cidade encravada em um sistema de vales tão imperfeito, com rios ocultos e mortos, fuligem e apresadores de índios. Tudo me fazia outro Alexandre, acidentado, pedregoso, difícil de alcançar. A cidade entrava pela casa e separava os tamoios dos tupys, nativos de estrangeiros e a cidade vivia sua mais agudo paroxismo: é uma máquina de separar. Morro acima, morro abaixo não encontrava meu lugar de pouso, nem cárcere, nem lar. E de repente, ao falar-me de seus planos, lá, no sul do sul, no fundo do Parque Farroupilha, fim de tarde com sol e risos, alguma coisa se rearranjou repentinamente. E podeira dizer, era outro Pacola, um Pacola trabalhado pelo tempo. E eis minha frase, dita assim, de modo abrupto e, mesmo impreciso, no condicional. E noto o quanto de ilusão ela guarda em si, e quão problemáticos são os enunciados fundamentais. Porque, normalmente, estamos enganados. Talvez não fosse outro Pacola, um outro Igara Pacola, talvez não fosse o tempo. E não era. Era eu. Não tanto o tempo que trabalhou em mim, idas e vindas formando entre planície e planalto um rusga de terra imperfeita e irregular, mas, sim, a paisagem, eu mesmo visto numa carta náutica, velha e amarelada encrustado em restinga que se perde e some no meio da baía. Precisei de outra geografia, e trabalhado por outra paisagem, recolhi das distâncias o que ainda falta e não encontro em meus meandros. Descobri, enfim, não sei o quê trabalhado pelo espaço, pela paisagem, pelas marés, pelo vento, transcrito em uma cartografia imprecisa e que me diz, de todos os caminhos, “vá ao sul”, “para o sul do mundo”. E encontrei um amigo com quem morei anomimamente como um estranho eu mesmo e durante o jantar refiz as medidas dos todos meus acidentes geográficos.


Par les beaux soirs d'été, j'irais dans les sentiers,
Picoté par les blés, fouler l'herbe menue:
rêveur, j'en sentirai la fraîcher à mês pieds:
Je laisserai le vent baigner ma tête nue...

Je ne parlerai pas, je ne penserai rien...
Mais un amour immense entrera dans mon âme:
Et j'irai loin, bien loin, comme un bohémien,
Par la Nature, - hereux comme avec une femme
A.R.