sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

O adversário.

Busto do Minotauro, Museu Arqueológico Nacional de Atenas.
para AOTC.

un exemple plus frappant de la force insensible et puissante qu'ont ces courants de la paission et par lequels l'amoureuse, comme un nageur entraîné sans s'en apercevoir, bien vite perd de vue la terre. Sans doute l'amour d'un homme normal peut aussi, quand l'amoureux  par l'invention sucessive de ses désirs, de ses regrets, de ses déceptions, de ces projets, construit tout un roman sur une femme qu'il ne connaît pas, permettre de mesurer un assez notable écartement de deux branches de compas
Sodome & Gomorrhe, MP

         Um outro que imagino me vendo da plataforma, o imagino vivaz, ágil, voraz mesmo. Inapreensível talvez, caminhando de um para outro lado, com a agenda cheia de compromissos inadiáveis. Não me atrevo a olhar muito no metrô, não quero ver, prefiro ser olhado ou imaginar que uns outros me vejam, resignado a minha condição de paisagem. A resignação não chega a ser, nesse caso, um incômodo. Apenas uma maneira de viver conforme meus limites. Imagino, entretanto, o que veria quem me visse assim, um pouco sério, de óculos, sentado, segurando um guarda-chuva anacrônico, com uma calma fingida mas bem ensaiada. Quase todos podem se dar ao luxo de me olhar sem curiosidade, já que sou pouco conhecido – de fato, quase absolutamente desconhecido – ainda que resista um pouco ao anonimato, tendo já desistido da fama. Talvez acredite que permaneça em mim algum traço não anônimo, pessoal, tremendamente íntimo, e, ainda sim, claro e visível, quase contagiante. Visível, marcante, notável. Evidentemente, é demais, são adjetivos demais, mesmo para os meus dias de maior entusiasmo e fantasia. Minha diferença específica, se existe, é quase ininteligível, que dirá visível ou simplesmente sensível. Todos somos tremendamente parecidos, semelhantes, análogos e sem graça. E isso  incomoda. Mas aceitemos alguma esperança (sejamos também e enfim semelhantes nessa esperança), porque ela é simplesmente humana. Cruzo constantemente com pessoas, e gostaria de saber de suas histórias e escapar do anonimato que nos cerca. Onde está a história, se há?
            Não esqueço o encontro com o casal de cegos na última estação da linha verde. Aparentemente os cegos apuram de tal modo sua ciência das superfícies que a crueldade de não ver não os impede de viver, pelo contrário. Mesmo que nesse tatear eles, por vezes, nos dêem a impressão de uma busca insegura pelo próximo passo, e nos façam lamentar um pouco cinicamente sua condição, seus passos são eficazes e produzem um caminho. O caminho conta uma história invisível: vista apenas de dentro por quem não enxerga. Ali está um infinito de considerações, estatísticas e medidas e escalas. O casal atravessou o hall de entrada da estação, desceu dois lances de escada rolante e chegou certeiro na plataforma pretendida. E desperdiçou alguns passos à esquerda, como querendo precisar um lugar, estar exatamente ali. Pediram confirmação a uma senhora gorda que confirmou prontamente e já se mostrava disposta a uma conversa sobre qualquer coisa para espantar um pouco o silêncio da estação. Mas, para eles que não vêem, talvez falar seja demais em certas ocasiões, quase como quando nós, os que acreditam que enxergam, resistimos a ver algo terrível e inevitável diante de nossos olhos. E, paradoxalmente, quando podemos ver, e apenas nessas circunstâncias,  resistimos à visão: ver demais pode cegar,  fechamos os olhos e vemos outra coisa. Os cegos declinaram educadamente a conversa e se concentraram na espera do próximo metrô, aguardando, suponho, poder quase enxergá-lo.
Quando chegou o metrô não olharam para o trem, olharam para mim e sérios, mas não aborrecidos.           O mesmo gesto se repetiu na próxima estação, quando desembarcaram: eles se deram ao luxo de um gesto vão e inútil (não é a exata definição de luxo) voltando-se para o interior do vagão, procurando-me, dando-me a falsa impressão de que enxergavam, de que podiam me ver, de que finalmente me encontraram, quando sou eu quem me procura. Mas afinal seria eu quem procuravam, se é que procuravam? Como é óbvio, não sei. O luxo também é fazer o inesperado, desde que seja inútil e vão.  Foi o que pensei – eu que não tenho uma imaginação  fértil.
O fato é que não me esqueci deles nas inúmeras vezes seguidas que quis enxergar e não consegui, ou porque não estava perto o suficiente do que precisava ver, ou quando, mesmo conhecendo o lugar, me perdi.
            Quando criança me perdi em um dia de finados. O cemitério estava cheio e representava para mim um mistério, naquela ocasião, um mistério especial: onde estavam todos, tantas visitas e nenhuma recepção, tantos nomes e nenhum  presente. Para onde tinham ido todos, e a pergunta ingênua poderia ter uma aprência de profundida, mas não era o caso. Só me perguntava, simplesmente, já que era evidente que não poderiam viver embaixo da terra, sob o peso incômodo de tantos passos. E lá estava uma multidão, e o privilégio de uma atenção, de uma lembrança, e de uma flor triste, parece que receberiam de bom grado. As flores de finados são estranhamente marcadas de um humor próprio, um pouco triste. Era justamente isso que estava em via de aprender. Ninguém vivia embaixo da terra, sob o calor de uma laje mal ajeitada de concreto. Não despertavam em face do  rumor daquela multidão estranha. Simplesmente não viviam, mas ainda sim podiam contar com a respiração rouca de uma multidão levemente desesperada e ser evocados e lembrados, como se estivessem presentes, como se pudéssemos ouví-los. E esse é mistério maior do que aquele de uma vida que acaba: o mistério de que a vida continua, sem ter por quê. A vida é cega e não vê suas próprias razões. Hoje, mistério trivial, já não pergunto pelas razões da razão.
            E não frequento mais cemitérios. A preguiça se sobrepôs a minha religiosidade de fachada, cansei de longas caminhadas e cansei das obrigações sobrenaturais, que, como não poderia deixar ser, obrigam a muita coisa. Meus mortos se enterram ou não, mas vagueiam por ai, às vezes dentro de mim, sem os privilégios de um campo santo.  Há dentro de mim uma campa úmida com nomes familiares e estranhos e uma data ainda indecifrável. E ainda os encontro entre outros vivos e outros mortos.
            Todas essas considerações vieram à tona um pouco sem querer, desde a última vez que visitei o apartamento em reforma e, entrando no prédio, o arquiteto me pediu um minuto para dar uma informação a uma jovem cega. Precisava tomar um ônibus, não muito longe, pedia ajuda, mas sem lamento, sem reclamação, de um modo quase imperativo. Foi a primeira lição: os cegos devem saber pedir sem precisar implorar.  Era bonita, morena, os lábios incarnados e delicados, e tinha movimentos mais pausados, mais calculados (ainda que precariamente), umas maças do rosto desenhadas, as mãos tremendamente doces, o que lhe dava uma elegância peculiar, persistente. E havia ainda algum outro detalhe raro, constante, que não consigo descrever nem esquecer. Essa moça não me notou, mas ouviu cuidadosamente o caminho que tinha que seguir e, em um instante, desapareceu na multidão. Deu-me não sei que aperto no coração (tão verdadeiro que o cliché não me incomoda), ela nunca me veria (ela nunca me viu) e eu que a vi tão furtivamente, e com o pudor de quem enxerga e não fala, não a encontraria mais, também não mais a veria, mas veria tantas outras coisas, pessoas, mulheres, bocejos, carros furando os sinais, caretas, expressões de susto, rostos amarrotados pela manhã e a dúvida sobre quem seria essa pessoa,  marcas de sarcasmo, de desprezo, tudo, imagens desinteressantes acumuladas em um canto. Eis a segunda lição: ver tudo a que se é indiferente, não poder ver o que preciosamente se deseja ver. A cegueira tem escuridões que mesmo a grande escuridão desconhece.
O apartamento atrasaria ainda dois meses, o que me aborrecia um pouco, mas me deu uma óbvia e vã esperança de cruzar novamente com a cega. Normalmente as pessoas se desencontram, não o contrário. Nunca mais a vi. A lembrança é um desencontro com o presente (a saudade é um tremendo desencontro com o presente): urgência de uma presença impossível faz com que me perca de mim mesmo. Lembro de ti, não te encontro, te procuro e me canso.
            Meu pai envelheceu tarde. Aos quarenta ainda era jovem e imbatível, disposto a tudo e estranhamente, porque à sua maneira, a paternidade. Sua idiossincrasia, sua maneira deslocada, o que o fazia tão visível, de uma visibilidade entusiasmada para nossa timidez, não nos excluía como seus filhos, formava-nos. Meu pai foi um pai cheio de lições inesperadas mas não enfáticas assim, o que exigiu um aprendizado mais delicado da nossa parte. Cada um de seus filhos, a sua maneira, passou a ser especial nos defeitos e nas suas qualidades. Mais nos defeitos, certamente. Meu pai envelheceu aos 65 anos, resultado de um revés, teve câncer aos 70, rejuvenesceu aos 73. Hoje quem envelhece sou eu. Nasci primeiro e desencontrei-me de meu pai. Minha criança envelheceu de calças curtas e, de repente, era séria demais para uma criança, criança demais para a seriedade. Hoje sou pai, e mais velho que o meu pai quando pai e olho pausadamente para o rosto de minha filha (penso no olhar que perdi de meu pai), mas não a vejo como quem olha uma foto; vejo-a por dentro. E não encontro respostas para suas perguntas.
            Para a fama a opinião de um não basta, ainda que baste para o amor e para a amizade. É um adágio, não muito popular, que poderia guardar como resposta para minha filha, ou para conversas pretensamente interessantes. A passagem sobre a fama veio-me também da conversa com o arquiteto. Falava-me de um construtor famoso que deixou certo legado à cidade. Mas a cidade de que falamos foi construída, derrubada e reconstruída pelo menos três vezes nos últimos cento e cinqüenta anos, o que significa que todo construtor faz sua fama destruindo o que estava em pé. E a fama que a posteridade lhe permite é sempre o resto dele próprio deixado por um outro impiedoso,  o próximo construtor, e testemunha, como ruína, a chegada de uma força mais poderosa e irresistível que um pilar e uma viga feitos sabe-se lá de que. O mundo é do concreto armado. O desenho da cidade é um mosaico, é rosto na chuva, é vento frio no inverno, susto, grito, passo apressado, um desejo superficial: sem finalidade, de restos superpostos. A fama, um rabisco fora da margem. A  cidade só é compreensível na sua irracionalidade: temos que destruir tudo. Tudo que existe merece perecer.
            Li a passagem e anotei-a um pouco distraído, pensando, entretanto, não na fama, de que o anonimato do metrô me salva, mas na amizade e no amor, que é certa glória e certa honra que resta para os que decidiram que a opinião dos outros não deve contar, mas talvez e apenas um única opinião. Uma consideração singular valeria o mesmo que a da multidão? Sim, no caso do amor e da amizade. Não é o número de opiniões que altera a ordem das considerações, mas natureza da consideração que modifica seu número. O amor é número impar. A amizade é número par.
Ao anotar o adágio já não pensava em fama, amizade e amor, formas de consideração em escalas radicalmente distintas, mas em um labirinto, a cidade, dentro da cidade, nós, labirinto que se constituía indiferente diante de mim ao tentar, por entre corredores de um prédio antigo, alcançar meu apartamento: não a saída do labirinto (meu apartamento e mim mesmo) mas a resignação cabal de que jamais sairei dali. Não espero Teseu. Vivo em um labirinto que já não é freqüentado pelos heróis de antigamente. A cidade por dentro é labirinto que vemos fora de nós: de dentro para fora permanecemos no mesmo lugar. Conjunto dos números irracionais, desmedida de todas as coisas, dentro de ti, o cidade. Quem é aquele ali mesmo? Não é o Minotauro?
             
        Um labirinto? Lugar para não se sair, uma prisão sem grades? As variações que ele apresenta – esquinas dessemelhantes, becos sem saídas, corredores indiferentes – são todas variações de uma permanência: uma lago imenso, um oceano de ondas constantes, um deserto homogêneo, a imagem confusa de uma cidade cinza desigualmente repetitiva, a lembrança de um sonho claramente incompreensível.
            Pois estava em um labirinto. Não havia cegos, não havia lápides, havia o cheiro úmido das flores de finados:  havia o homem e seu labirinto.
            Quando o encontrei não houve tumulto. Mas de repente veio o medo, e a imagem do medo não era medo imaginado, era medo real e meu medo o senti crispar pelo corpo e espalhar-se com suor gelado. Depois serenei com o medo e pudo olhar os olhos do adversário. E ficou algo de terrível. Não era ele. Era eu. O Minotauro?

            Ao menos 14 pessoas foram assassinadas em São Paulo entre a noite de sexta-feira e a madrugada deste sábado. A série de ataques seria uma resposta do facção à decisão do governo do Estado de isolar os líderes. Levantamentos preliminares apontam que as vítimas são seis policiais civis, quatro policiais militares, dois guardas municipais, um agente penitenciário e a namorada de um policial. Ao menos outras 15 pessoas ficaram feridas. Alguns suspeitos foram mortos em confrontos e outros acabaram detidos.
            As ações ocorreram em diversas regiões da cidade e em alguns municípios do litoral e interior do Estado. Os ataques começaram horas após a transferência dos líderes de uma unidade  para a sede das  Delegacias. Os policiais estariam investigando o planejamento de uma onda de crimes e rebeliões.

            No início da madrugada, toda a cúpula da polícia se reuniu no quartel da Polícia Militar. E nada sabiam dizer.
            No início dos ataques líderes foram levados às Delegacias, mas o teor da conversa não foi divulgado.
            Com a transferência em massa, porém, o governo teria como objetivo desarticular a atuação de facções criminosas no sistema penitenciário -- inclusive na promoção de rebeliões simultâneas: mas ainda havia o Minotauro.
E ninguém pretende enfrentar o Minotauro.
Meu beco sem saída era eu próprio a me olhar no espelho: atrás do espelho já era Minotauro. Serei eu o Minotauro, ou a imagem de mim mesmo que o espelho não reflete?
            Não via apenas minha própria imagem. Talvez houvesse mortes, crimes bárbaros, traições, parricídio.
            Esta cidade só me diz não. Não é o Minotauro?
           
Dormindo mal havia três noites em uma casa em ruínas, em meio a uma outra série de  ruínas (os restos inaproveitáveis dos outros) sequer lembrava do dia de Juízo Final que os outros enfrentariam depois do Domingo, dia do Senhor, e se afinal se safariam ou não da espada do Vingador e de sua sede de tirania. Estava prestes a mudar, e mudar é enfrentar o labirinto, mudar é reencontrar o labirinto: do que vai, do que fica de nós e dos nossos restos. A cidade, sem saber, esperava pelo grande medo.
            Mudava-me em uma debandada coletiva dos altos da Apinajés, sob os solavancos do improviso e do desencontro, cada dia meu daquela última semana assumira o ar de um levante dramático: livros, cama, mesa, abajur, confissões atrasadas cada coisa com um destino diferente adiava meu próprio destino, e foi quando me vi dormindo sozinho em um colchão, em uma casa pronta para ser mal assombrada, por outros que não os já quase antigos moradores. Mas ainda alheio a tudo, eu mal conseguia coordenar meu próximo destino, melhor, a próxima parada, olhava e me perguntava: serei eu o Minotauro? E só agora percebo o motivo  profundo da profecia. Houve nisso tudo uma inesperada comunhão. A minha mudança foi completamente selvagem, o processo de mudança foi uma longa campanha selvagem, meu último sábado na Apinajés foi um último domingo selvagem e pagão: tive, sem me dar conta, a suprema experiência da presa caçada, por antecipação. E já era, ao final, tão diferente de mim mesmo, meio besta, meio monstro e meio humano, que não hesitaria mais em olhar atrás do espelho: afinal já ouvia ao respirar o estupor abafado de uma besta de carga.
            E no domingo, que para mim já era segunda, vivi a certeza serena da derrota. A cidade é dos mortos. Quando chegarão os vivos? O Minotauro?

...
“Não só criei esses jogos; também meditei sobre a casa.
Todas as partes da casa existem muitas vezes, qualquer lugar é outro lugar. Não
há uma cisterna, um pátio, um bebedouro, um pesebre; são quatorze [são infinitos]
os pesebres, bebedouros, pátios e cisternas. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor,
é o mundo. Todavia, à força de andar por pátios com uma cisterna e com poeirentas galerias
de pedra cinzenta, alcancei a rua e vi o templo das Tochas e o mar. Não entendi isso
até que uma visão da noite me revelou que também são quatorze [são infinitos]
os mares e os templos.
Tudo existe muitas vezes, catorze vezes, mas duas coisas
há no mundo que parecem existir uma única vez: em cima, o intrincado sol; embaixo
, Astérion. Talvez eu tenha criado as estrelas e o sol e a enorme casa, mas já não
me lembro"
...
Como será meu redentor? - me pergunto. Será um touro ou um homem? Será talvez
um touro com cara de homem? Ou será como eu? - A cidade sou eu, sou eu a cidade, meu amor.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Opereta do Falso Fernando Pessoa II.

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A timidez sempre me assustou. Era como se eu, com minha timidez, fosse um amante impossível, como se ela estivesse aí, a me lembrar, de que não conseguiria cumprir esse destino inventado. Claro que não acredito mais nas minhas ilusões de juventude, amor, poder, glória, elegância, distinção. Claro que sobrou um nada incompreensível disso tudo. Meu amor não resiste aos fatos. Meu primeiro beijo foi em Carla, de quem sempre gostei do nome e, no geral, sempre achei muito bonita. Ela morava perto de casa e trocávamos cartas por meio de um amigo, imbuído da função de cupido. Como é inusitado pensar nisso nesses dias que qualquer informação está sob o permanente risco de violação. Havia um tempo que os sigilos do amor eram invioláveis. As cartas sempre chegavam com um certo perfume, que depois vim a descobrir que era o de um sabonete que ele esfregava no papel almaço.  Não sei quanto tempo durou, mas Carla foi a descoberta do beijo e é dela toda minha pré-história do beijo, todo beijo que dei traz uma marca daqueles primeiros beijos, daquele aprendizado do beijo. A ciência do beijo pode resumir toda a educação sentimental necessário ao homem médio: você aprende o tempo de se aproximar, a geometria do toque e da atenção, e a proximidade absoluta da experiência do beijo e o silêncio que se segue (o beijo consumado dispensa a palavra). O mistério do beijo suspendeu minha atenção para o que viria depois. O beijo (quase) sempre é a melhor parte. Esse enigma monopolizou minha vida por muito tempo. Parei repentinamente no beijo, fiz toda uma filosofia do beijo. O beijo foi uma suprema conquista, mas em um tempo que se barateava o beijo, em um tempo que o beijo foi reduzido a um formalismo vazio, querer dar-lhe ares de cerimônia, de ritual, era notável contra-senso. Fui ficando demodê e ultrapassado. O beijo tornou-se sumário, quase imediato, em um mundo frenético,  quando eu ainda o queria cheio de arabescos e maneirismos. Beijei Ana Paula, Shirley, Fabiane, Clarice, Maria Luiza, Júlia, Jussara, Alessandra, outra Carla, Cilene, outra Alessandra, dua Andréias, uma Juliana e quase beijei uma Marcela, uma Érica e uma outra Juliana, mais Juliana que a primeira, e que ainda me assombra com a possibilidade de um beijo beijo, o que me traz certos arrependimentos. De fato, arrependo-me de muitas coisas. Marcela sumiu, em meio a tantas outras coisas, Juliana se casou, Carla faz de conta que não me conhece, se é que me vê quando ainda me vê.  E, em meio a um desamparo profundo que senti por volta dos 17 anos, o beijo passou de minha filosofia a minha religião. Sem saber explicar muito o porquê, fiquei para trás. Não cresci como meus colegas de escola, demorei muito a crescer. Vivia ainda as voltas com o beijo. Fiquei congelado em uma precocidade obsoleta. Dei um último beijo ingênuo em outra Alessandra, um beijo como eu gostaria de dar, ao meu estilo: cerimonioso, ritual, entusiasmado, em meio a promessas impossíveis e realizações improváveis. Esse beijo reforçou  minhas observações teóricas e práticas sobre beijo, mas como não havia investido sabedoria e conhecimento suficientes no pós-beijo, ele foi uma espécie de teto das minhas aventuras adolescentes e galantes. Era o menino que recusava o homem. Daí descobri o pós-beijo, o mistério por detrás do mistério. E isso só foi com Ana Cristina.

A primeira vez que a vi, não me interessei imediatamente. Sim, ela era bonita e muito, dois pré-requisitos para qualquer olhar. Mas eu vivia muito vago com meus problemas teóricos ainda em torno do beijo. Começamos a sair juntos um pouco como quase namorados, tínhamos amigos em comum, mas havia uma distância entre nós que parecia intransponível. Era a distância do beijo, posso hoje profetizar. O antes do beijo é um abismo. O depois do beijo é uma planíce. Foi aí que aprendi outro beijo: o beijo que não é fim em si, a coisa ela mesma, mas do beijo que é começo e partida, o beijo que abre o parágrafo. E foram cinco anos de Ana Cristina. O primeiro beijo em Ana abriu-me também desvãos de uma paixão que eu não esperava – era o efeito novo, na forma de novos afetos, de um beijo absolutamente novo. Jovens, inexperientes, agitados, podíamos ser o que quiséssemos. Durante três anos vivemos longe um do outro. Com a distância, fomos  preenchendo o outro com o que imaginávamos de melhor, de mais terno e carinhoso. Por fim, houve um grande desencontro. É curioso como hoje penso em Ana. Todos a chamavam de Cristina ou Cris, eu era o único que a chamava de Aninha ou Morena, por amor à diferença e ao absurdo, já que ela era loira. Quando terminamos, Ana teve um curto enlace com meu ex-melhor amigo. O que naturalmente  não me deu muitas alegrias. Fiquei talvez três anos triste, um pouco sem direção, depois de Ana. Depois de Ana, todo o mundo precisou de uma nova teoria. Viva a injustiça de acreditar que, se não havia dado certo com ela, não daria certo com ninguém. Senti muita falta dela, mas de um jeito egoísta: não via como nossa história poderia continuar, parecia-me mesmo muito encerrada, mas acreditava que ela  deveria voltar para me consolar da nossa impossibilidade. Mas ninguém voltou. Nunca mais a vi. Subitamente voltei a pensar com carinho nela, como se pensasse em algo conforme a um contorno definido. Uma Ana que passou, em torno da qual amei acreditando amar, quando ainda aprendia coisas que, finalmente, nunca se aprende, nunca se aprende. Poderia dizer que há uma certa Ana Cristina, olhos verdes, uma graça menineira, delicada, mais que hoje me escapa, na forma de uma desenho lembrado mas cujos destalhes a escala não permite mais ver. Não sei mais o que é, sei que ainda está aí, em algum lugar.  Deu-me um certo conforto pensá-la segundo o contorno definido do tempo, passado passado e presente. E se sofri, se houve o  pavor de um desconhecido imenso que deveria enfrentar na sua ausência, de um mundo que, ainda tão jovem, negara-me definitivamente o amor, segundo as impressões trágica que tinha das coisas e, em parte, conservo; o mundo não foi tão mau assim, o mundo não foi tão cruel assim, foi apenas quase indiferente. O amor, ou a impressão do amor, volta sob diversas formas. E não convém as listas, os arquivos, as anotações de datas, os registros contábeis. Minha intenção não é  escrever um arrazoado ou um repertório da minhas tentativas em terreno tão movediço, como se a "experiência" se acumulasse quando a "experiência" só desmente a experiência. As tentativas do amor às vezes nem tentativas são, são quase tentativas, acúmulo de erros repetidos em nome da esperança tão vã de não mais errar. Descobrir o mistério de tantas tentativas, o que as une, o amor como uma deliciosa falta que nos apavora e assusta também não ensina nem justifica nada. É apenas uma forma um pouco mais cética de esperança. Imagino em mim o menino que amou e que ama, se ele ainda ama. E se ele ama, o que imagina?

Uma esperança, entretanto, me anima. Uma esperança profunda (que também é uma compensação em relação a tantos maus hábitos acumulados). A esperança abra as portas, mas não ensina os caminhos. Poderia chamá-la de qualquer nome.  Terá nome inventado. E nenhuma invenção é gratuita e invento obedecendo a ordem necessária dos meus afetos tão díspares. A chamarei Laura, porque já é um belo nome, porque conheci uma Laura que vale um poema, e porque há essa Laura conhecida  me chamou e sorriu sem que eu pedisse ou esperasse, uma Laura perdida, jamais encontrada, como tantas Lauras. Essa Laura inventada pela atribuição de um nome é muito mais formosa que a Laura Laura conhecida. Mas como não sei se sua doçura é equivalente a da primeira, (a imagem é uma promessa), sua beleza indiferentemente bela – tremendamente bela – compensa o gosto que não sinto, mas imagino. Ele é a mensagem que espero de uma beleza tal que se ama sem se saber o quê – prosaica na forma, infinita no alcance – e é justo por isso que salvo, conquisto e sequestro sua imagem dando um nome definitivo – e és Laura, e eu, Don Juan imaginário. Minha esperança é, ainda que não ame,  imaginar que amo

Opereta do falso Fernando Pessoa.



Por algum tempo acreditei que amar era um tipo de dom que me tornava especial. Sentia-me não apenas conhecedor do amor, mas infalível praticante (quando o acaso assim me permitia). Sentia-me propenso a amar muito e melhor que qualquer outro, em minha auto-imagem amorosa e isso funcionava como um consolo tardio a uma série de inabilidades que acumulava na vida abstrata  que foi se inventando em mim. Poucos amigos, pouca diversão, pouca alegria, uma espécie de solidão forçada tornada mania, uma recusa se generalizando, um apelo insistente pelo não. Não seio de onde veio esse não, como forma de vida, mania e deleite, essa recusa impertinente, mas de repente ela estava comigo por todos os lugares em que andava. Mas meu hábito soturno, retraído, não era proposital ou nunca se pretendeu assim. Todo adulto tímido guarda algum segredo de criança. Meus segredos de infância são as invenções do adulto: minha casa da infância é uma lembrança secreta. O quarto grande no final do corredor, piso de taco escuro, as paredes enormes, brancas, uma muralha para uma criança intromedita. Não sei se o quarto no final do corredor era o meu ou o dos meus pais, não tenho mais certezas sobre a disposição da infância naquela casa, ou melhor, a ciência geográfica de uma criança é sempre literatura fantástica. Ora meu quarto era o do final, e me lembro do esmalte branco da proteção lateral de minha cama que guardava meu sonho dos tombos que levaria acordado, ora me lembro de uma fresta de luz no quarto do meio do corredor, a sensação de não apenas estar ali, mas de ser ali, ainda um estranho em meu próprio mundo. Minha cama de fórmica, amarela e branca, o banheiro no começo do corredor. Um dia tomei banho com meu pai, e pedindo para tomar banho frio, lembro da resposta tímida e prudente de meu pai, evitando contrariar muito os caprichos de um menino de dois anos, o primeiro filho, “é muito frio filho”. Insisti e logo confirmei, “é frio mesmo pai”, não sem um certo maravilhamento pela descoberta do frio, ou redescoberta. Caminhava pela casa, e lembro-me de a conhecer, mas a lembro estranhamente escura, passando por meio da escuridão do corredor. Havia um quintal todo cimentado, mas com uma porção de terra reservada para plantar algo que nunca foi plantado. Uma janela grande e ampla na sala, por onde entrava a maior parte de luz da casa. Foi nesse mesmo quintal que aprendi a andar de bicicleta com alguém de quem já não me lembro o nome e era a sua maneira generoso e voluntarioso. Lembro-me da primeira sensação de equilíbrio, na bicicleta, descendo pela faixa de quintal que envolvia a casa, toda a resistência em se equilibrar, a dificuldade das coisas que é, afinal, o ajuste entre sua própria natureza e nossa própria natureza. Na cozinha, o aquário redondo com dois peixes alaranjados, de quem eu cuidava com muita displicência e a porta de ferro e vidro que dava para o quintal. O segredo da infância é continuar lembrando-se dela. Não sei, porém, quem era esse menino: na história desse segredo há apenas um estupor, um susto de ser menino naquela casa que já não existe mais. Hoje parece que sabia o quão pouco tudo duraria porque tudo mudaria repentinamente, e nos mudamos sem que eu afinal tivesse me acostumado com a casa e comigo. Na minha outra casa da infância tudo era diferente. Havia uma quintal selvagem, sem cimento, povoado de bichos. Meus  irmãos recolheram o mistério dos lugares para o mistério de nós mesmos: não sabia quem eles eram, não sabia quem eu havia sido. 
Custava-me ser assim, de modo que procurava em mim uma compensação para um mundo hostil que, se me habituara, não me confortava. Vivia desconfortavelmente, procurava uma saída imaginária para tantos problemas colocados e assim ia elaborando minhas teorias. A recorrente passava ou voltava, como quase todas, pela infância. Tenho uma imenso acervo de lembranças da infância: a infância não me abandona. Viagens com meus pais, a praça do clube do expedicionário, uma chamada de atenção de minha tia (vai ter baile no salão?), uma capa de super-herói (eu disposto a salvar o mundo da maldade). E como há maldade, meu deus. A piscina na escola, todos em algazarra em volta da piscina, correndo, barulho d'água misturado aos sons desencontrados das próprias crianças (acaso ainda resta alguma palavra inteligível, que escutei e já não me lembro? De mim, dos outros, da infância?), e o chamado da professora: vamos, vamos, vamos. Uma visita a fazenda, uma festa junina e um parquinho vago, escondido em algum canto da cidade que já não existe mais, mas tremendamente fantástico e sedutor: alguém sorria para mim enquanto estava na gangorra e deixava a gangorra e para ir ao cavalinho.
Houve um corte abrupto em minha vida: meus irmãos nasceram, nos mudamos de cidade, senti-me muito sozinho em meio a um mundo de repente estranho. Sem tias, sem visitas, sem o entusiasmo da uma família grande e cheia de defeitos, sem o cúmulo de afetos que a exclusividade me garantia, foi educado apenas pelos defeitos próximos de meu pai e de minha mãe, o que talvez me faça muito previsível. Passei pela experiência do ostracismo, fui sequestrado na infância e algo esquecido e quando alguns anos mais tarde meu pai me esqueceu na escola, em sentido próprio, tive a confirmação da incompreensível primeira lição da vida. Que ela pode acabar sem avisar. Todos podem ir embora a qualquer momento. As luzes se apagam. Nos encolhemos. E resta apenas uma respiração assustada. Somos todos frágeis. Os segredos da infância se perdem, os recuperamos e os perdemos novamente.
Com os ponteiros desajustados padeci da mesma tristeza que minha mãe, ficamos os dois tristes e sem consolo com a mudança. A propensão à tristeza de minha mãe talvez tenha alimentado a minha, mas seria demais talvez culpá-la de tudo isso. Reservo alguma originalidade a minha tristeza porque também tenho certos orgulhos. A estranheza do mundo começou dessa sucessão de fatos inesperados, ainda mais para alguém com relativa pouca experiência. No interior do país e do interior de mim mesmo não via as brincadeiras das outras crianças como um oportunidade de brincar também. Olhava os vizinhos curioso, fazendo festa, rindo, brincando, ansioso talvez para que me chamassem, mas com uma certa indiferença difícil, incompreensível. Sabia que não seria chamado. Via-os com a nostalgia de uma criança de muitos anos, como se eu fosse uma criança proibida pela minha tristeza e a de minha mãe, pelos problemas doméstico que em parte entendia, pela falta que me faziam minhas tias. Olhava as outras crianças do alto de minha experiência fantástica. Havia fantasticamente crescido e, um senhor de quatro anos avaliava com certo desdém os outros. A tristeza dessas sequência de acontecimentos alterou minha vida de criança, a tristeza fez a minha criança recolher-se e ver-se tão diferente, quase estranha a mim mesmo. Perdida a espontaneidade, viver como criança foi algo como uma espera por crescer. Nas viagens de ônibus pedia para me sentar sozinho – sempre sobra alguém em uma família impar. Já me preparava para minhas possibilidades de adulto. Eu adivinhava, com uma esperteza ingênua, que crescer seria melhor que viver interditado e à parte, como vivia então. Mas faltava ainda muito tempo para isso. O que faria durante, digamos, dez ou quinze anos? Aprendi também a esperar (o que me cansa, agora que sou velho, porque já esperei demais). Os velhos desaprendem a esperar porque esperaram muito ou porque já não tem mais tempo para esperar. Para aqueles que a velhice é só a última espera, sem fama, sem glória, sem sobriedade, sem conforto, a espera é apressada. O cansaço de que falo não não é aquele de quem fez algo, realizou algo. Mas o cansaço estéril das tentativas frustradas. Não estou aqui para falar do óbvio: essa velhice que me toma o corpo, marca o rosto e denuncia a doença. Estou aqui para falar das aventuras do que acreditei ser as do amor. O amor é antes de tudo uma fantasia íntima, uma fantasia de salvação. Amar, ser amado, apaixonar-se é crer no milagre do outro. E o milagre do outro só pode ser uma fantasia. Sei que você chama isso de outra coisa (loucura, frustração, erro, doença), mas no final vai me entender. Não vou falar ainda disso. Ela é o último capítulo. A velhice que vivo, entretanto, tem sim um último consolo: reconcilio-me com o menino que fui, olho para o homem que tentei ser. Não há alegria nisso, mas uma satisfação morna, um conforto quase calculado, uma resignação pacífica. O menino ainda quer brincar. O menino persevera.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

O Pornógrafo III.


O pornógrafo II.

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O pornógrafo.


Cuesta abajo.

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Diário da guerra do porco – Diário de la guerra del cerdo.

            Medir a idade das coisas não é simples. A ideia de antiguidade pode estar ontem, no último bocejo: quem era aquele ali, escovando os dentes? O mais estranho selvagem, de outras eras, em roupas de dormir?  As medidas das coisas e suas exigências nem sempre são fáceis. Quanto tempo se passou no relógio desde de que ele despretensiosamente começou a medir o tempo? O relógio finge, mas não despreza a passagem do tempo: é uma mecânica consciência de si, que se comunica com a linguagem pecular do tic-tac, tic-tac. Desde a primeira frase? Desde o último minuto? Foram vinte, trinta segundos. E agora, mais um e outro. Difícil saber (as horas contadas, nenhuma soma feita, resta quanto tempo?) o tempo das coisas.
As coisas talvez se impregnem de outro tempo. E o tempo medido e contado em calendários, relógios, aniversários e prestações fica presos nesses aparatos. Os anos conforme o calendário, dia a dia, são uma útil convenção, e não serei eu a negar pela enésima vez a utilidade das coisas, de todas as coisas, salvo as inúteis.  As convenções inventadas, entre tantos utensílios que vestimos e dispomos, e tantos cuidados possíveis com a higiene e a saúde foram certamente bem inventadas. É preciso mais do que aceitar esse mundo dos homens, é preciso lhe dar vivas e celebrar. Os meus pendores revolucionários param por aí, quer dizer, por lá, atrás, bem antes de qualquer revolução, possível, provável ou imponderável. Dizer, afinal, que,  às convenções escapa algo de essencial, é mais um desses clichês verdadeiros, sinal péssimo estilo  e vamos que o tempo passa. Mas lá, nem tudo na vida e nos textos são a pura poesia das esferas. prosa, notícias de jornal e bulas de remédio, com o texto incompreensível dos efeitos colaterais.
            Quanto tempo passou? Nos olhos da minha filha?
            Cada coisa medida e guardada, de repente, pode despertar  de outra era geológica, trazendo notícias de um outra civilização feita de amores e suspiros incompreensíveis, brigas épicas e inesperados pedidos de perdão. Não é só o homem olhando no espelho; é o homem atrás do espelho. Estes repertórios da narrativa íntima das coisas acabam preenchendo um tempo ao oriente do tempo e entre um traço e outro do mostrador do relógio um infinito caminho de tangos, milongas e brigas de amor. O que é isso? De onde vem esse vazio entre os vazios do que se vive muito simplesmente como homem, mulher, funcionário apressado, cartomante, pitonisa, cabeleireira, profeta amador ou dona de casa?
            Não é bem esse meu assunto (já falei isso ou deveria me repetir a esta altura?). Resisto pouco, porém, a que tais digressões. Não é raro lembrar a trivial ocasião em que entre dois ou três anos passam mil ou dois mil anos imaginários e imaginados (a volta, melhorado, do clichê), cheios de tantas idas e vindas, sustos, sopros, ideias brilhantes, sucessos possíveis e impossíveis e meia dúzia de fracassos retumbantes. Poderíamos chamar isso muito simplesmente de vidapor sua falta de simplicidade -, lembrando de que, por detrás da convenção e dos lugares das coisas, sobra um resto de tudo. peço desculpas: não pretendo ir tão longe com minha cômoda metafísica de bolso. Nem fazer a doutrina da lógica deste tempo inútil por detrás da trivialidade das coisas, do dia a dia e dos amores. Tudo pode ser tão somente a banalidade da carne, da nossa carne. Queria apenas pegá-lo a mão: o tempo que preenche o presente convencional de tudo é todo o tempo que temos diante de nós, numa estranha inversão de perspectiva: e quando este tempo repentinamente se estreita, não é nosso futuro que diminui, é nosso presente que se esmaece. Parece complicado, mas não é tanto assim. Os mil anos que passam entre um amor e outro, separado cronologicamente por míseros ano e meio, vem exclusivamente dos infinitos amores diante de nós, do tempo inesgotável para o amor, que, estando adiante, preenche o presente. E está ele, o amorque é bicho instruídorealizado por aquela figura fugidia, instável que, estando diante de nós, nos surpreende e nos fixa. Sua fonte é um infinito de tempo e de possibilidades.  
            Volto, enfim, ao assunto: e quando esse tempo vai cessando, as possibilidades escasseando, a imaginação das coisas repousando subitamente nas cronologia dos relógios, das goteiras e dos aborrecimentos de fim de mês? A velhice não é a morte das coisas, nem um imenso receituário de remédio, dores, recomendações de sono, banho e chinelos,  mas o fim de toda uma ordem da imaginação. Parece dramático e grandiloquentevolta meia sucumbo às minhas tentações metafísicas; a velhice é apenas trivialmente, modestamente dramática: tudo que depende do futuro para estar presente, cessa para o velho o tempo cessa de correr e se tem o incômodo da eternidade.  Alguém disse, mas não custa repetir: não vantagem nenhuma na velhice. Nem como lhe resistir.  A ela, nenhum apelo é válido. Perdemos algo muito preciso: o tempo que preenche o tempo com tudo de tudo, com a imagem volátil de todas as coisas na forma de planos, sonhos, amores e vontades impossíveis.
            Repenso o último parágrafo. Demais, infeliz, quase exagerado (o quase para o exagero talvez já seja exagero). O velho insulado em um presente  fechado, submetido ao tic-tac do relógio de todas as coisas, até que subitamente... Enfim, a velhice também é lugar do ressentimento e das paixões tristes.
            Detenho-me um pouco nas paixões triste, por cúmulo de tristeza: acomodado em chinelos, penso menos nos anos que passaram, mais naqueles que não passarão mais. Estou ficando velho.

(La aceptación de las proprias limitaciones eventualmente es una sabiduría triste). Diario de la guerra del cerdo, ABC.