quinta-feira, 22 de março de 2012

Um boi vê os homens

Juriti vermelha III

Sempre me pergunto se quando durmo imagino, como se para além do sonho, na realidade irreal de quem sonha, houvera outro sonho a ser sonhado. Será, afinal o sonho a secreta câmara de combustão de um mundo autônomo das imagens ou, justo oposto, seu efeito mais maravilhoso? Há mistérios imensos para mim que vejo pouco o que vejo para muito ver o que não se vê; (já não poderia dizer o que acaso não vejo porque isso é o fulcro desse pequeno enigma, vejo o que não há e havendo ou não, não me importo.) Porquanto, por conta dessa falsa faculdade meus dias seguem orientação diversa: olho para ti, e se te amo; e poderia muito facilmente te amar, amo-te para além de ti, e finalmente, não sei quem amo, ainda que saiba que você, em pé a me olhar tem um corpo cuja silhueta é remédio e doença de quem vive a imaginar. (E são tantas as tardes que já passei contigo, na cama havia lençóis desfeitos por movimentos sugeridos e passeamos em tardes de sol de mãos dadas ou passearíamos depois de levantarmo-nos e teu rosto, fosse como fosse, seria claro – não há tempo para coordenar as minhas imagens que são tuas, mas há, devo dizer, o tempo de agora da imagem, e o tempo presente em que te vejo para te ver não depois, mas tão já depois, de ti, tu a me abraçar, ainda que não me abrace.) Meu remédio és tu que me pões a imaginar desde as primeiras camadas de um mundo que se sonha, acordado ou não, e cujas variações primárias são geográficas e pictóricas, - teus olhos ficam ligeiramente amendoados ainda que continuem pequenos e amorosos e há mesmo, em você, bruscas variações de cor que espantam e admiram – até as profundas variações em cujas palavras ditas são outras, todas completamente outras, e suponho estar imaginando em outra língua, numa sintaxe sem correspondência – o que se compreende, afinal: amando que mistério é maior que o amor por esse outro, singular e inofensivo; sua língua não se deve compreender – e tem-se a vaga sensação de dizer algo que quase se compreende e não se entende, e desde o início sabe-se que não há, sobre esse assunto, humana compreensão. Entretanto, és sempre tu e sempre és tu e não outro, mesmo as mais estranhas palavras, na tua boca, nunca noutra. (Agora te abraço e ficamos calados, sem entender palavras que o amor não entende)
Mas não amo só ou não só devia amar.
Pela cidade há imensos reservatórios de imagens, em ruas movimentadas e desertas, em carros estacionados, em pequenas praças de passagem. Livre, entretanto, para não só esperar imaginando (mas imaginar esperando) poderia também esperar por outros tempos – e atravessei o calçadão, havia por baixo da voz rouca de contas e negociações, de ofertas de compra e venda, o rumor mais humano da cidade, ainda que rebaixado, modesto, incompreensível, lasso; sugeria-me caminhos (eu prestes a imaginá-los), paradas para o café, olhares desatentos. Somos todos nós que passamos por ali e era preciso notar-nos, contemplar-nos e o tempo era de urgências. Andava e em meu irmão havia um olhar sério conformando seu rosto a um conjunto quase infinito de problemas universais, e mais belo permanecia seu olhar nesse estado de coisas, que já não era só dele, vinha de meu pai, atravessara a península ibérica com o pai de meu pai em um caminho de maldades e desencontros, e estava ali. Era testemunha delicada que também eu estava pronto, o mesmo sangue repartido em vários corpos, purificado pelas viagens e estável, imóvel só nele, no rosto claro e anguloso, no olhar de pai estranhamente repetido; e olhávamos, olhávamos e bastava para que dissesse: vamos. E fomos. No fim de uma galeria sentamos calados e despreocupados. Vi que passavas, não eras tu, era outra – tinha um andar preciso encoberto pela meia calça e marcado por uns tais sapatos que se faziam notar – e essa outra te trazias como uma sombra secreta, e não sorrias para mim, nem sorriria, estando, entretanto, lá, como que pronta para um dia sorrir. Sorri, eu, sem mover o rosto, imaginando sorrir para alguém que ausente pudesse ser encontrado antes que encerre todas minhas as tarefas. Quando apareceste e finalmente me sorriu, disperso por tanta espera custei a devolver-lhe o sorriso, mas devolvendo-lhe dei-lhe mais, sem o saber, e tudo tu merecias, “o amor é a única razão da vida”.Ainda que não fosse, imaginaria que fosse, e foste tu, e foste todo o amor.
Entretanto, há dias que passam de outro modo. Tão pouco e pequeno. Não porque se ande apressado ou se reserve o olhar para tarefas precisas. Mas porque no turbilhão das obrigações e dos constrangimentos cotidianos só se conta com um mundo morno, repleto de verdades provisórias, suportavelmente falíveis.
Por entre os carros alguém fugia, havia uma peça de roupa marrom, um espelho de mulher e uma mulher. Encontram-se, os traços do rosto alteram-se, há suspiros e ais. Mas não há pessoas. Vejo outras formas e coisas mais imprecisas do que se imaginaria, se se imaginasse. (Eu que sempre estou a imaginar e a perder-me em imagens que não me redimem).
Apenas me conforto na mais profunda mentira de mim mesmo, apenas a contemplo com clareza e carinho, uma mentira que me fizesse outro e me fizesse finalmente voar.
Passo, presto, passarinho.

Juriti vermelha (segunda versão)

Felicidade não se escreve. Ainda que seja assunto polêmico e de vasta bibliografia. Os motivos são óbvios e limitam-se aos problemas de princípio que uma simples pergunta pela definição sugere: o que é felicidade? Presto e está dado o ponto de partida para intermináveis digressões que a medida que a vida passa tornam-se mais e mais eruditas. Sim, felicidade é questão de erudição, tal como a própria vida – sem a pretensão do exagero. (Notem quantos livros e fórmulas mágicas e simpatias infalíveis trazem em si esse dado fora de circulação: como viver?; e quantos programas televisivos acalmam os telespectadores da tarde, assegurando a felicidade para logo mais, à noite?) Entretanto, crê-se ser possível enumerar um ou dois argumentos que validem esse ponto de vista (acerca da felicidade e, por extensão, da vida e seu caráter despropositado): havendo alguém feliz, real ou ilusoriamente, pouco importa, o que se observa é que não há meios que tornem isso, esta estranha sensação confusa e efusiva, objetiva (minha espécie, faz muito, perdeu a compreensão disso). Alerta-se que não se pretende que a felicidade ou qualquer um dos seus correlatos sejam cambiáveis – asseguro, de resto, não pretender ser feliz; apenas pôr a prova sua comunicabilidade. E lá vêm os felizes com receio de, além disso, serem incompreendidos – dupla adjetivação muito perigosa – organizados em partidos, fazendo palestras, vendendo vídeos e sobretudo nos apresentando razões sempre mais e mais inverossímeis (uma reconciliação improvável, um encontro inesperado, conforto material assegurado ou simplesmente um sem motivo gratuito e surpreendente) para a verdade de sua felicidade. O fulcro dessa impossibilidade, segundo se crê, é justamente a idéia de sensação. A tradição assegura um lugar pouco confortável para esse conceito que pretende apreender aquilo que não é conceito. Pois bem, o que é sensação? Com que substância se preenche a palavra enunciada? Sensação é...excitação da sensibilidade, é ativação da parafernália psicofísica, é calor, fome, frio, é...quem sabe felicidade sentida, a única que interessa. Mas se dissesse que sensação é o vermelho dentro de nós quando ainda está fora – vermelho tão vermelho mesmo que ausente –, ririam de mim, não me entenderiam e seria estranhamente cômica a comunicação. Daí concluo minha premissa: felicidade não se escreve, e logo, tão logo, não se a entenderá, nem palavra, nem substância que a palavra pressupõe. E será necessário um imenso esforço intelectual e coletivo – em seminários, grupos de estudos e centros de pesquisa, financiamento público e atenção da comunidade internacional – para compreender o que perdeu instantaneamente e de maneira irremediável a atualidade.
Nada mais contrária a isso que a infelicidade. Não me entendam mal. Não é a simples oposição que lhe garante a clareza: é a diferença de natureza que lhe garante a oposição. Assim nada mais determinável, factível, exato e preciso que a infelicidade que porta aquele rosto conhecido que o acaso, por vezes, traz-nos. (E a infelicidade incontornável de depararmo-nos diante dele – o rosto – e de sua presença absoluta, indesejável e familiar, inferirmos indefesos nossa modesta participação na infelicidade, numa infelicidade maior que nós e nossos cuidados.) Ou a mágica infelicidade que certas palavras trazem em si, como bandeiras da própria desgraça: que ser sensível e inteligente diria “atenção” sem a desagradável sensação de que deveria estar onde não está porque não quer lá estar? E como compreender, sem uma infeliz constatação, a mágica coerção dessa palavra? Amor. E “amor”? O que segue essa pobre palavra, resumo de esperanças e maldições, senão o desespero indiferente de sequer fazer parte do seu círculo de iniciados. “É o amor”, diria apenas aquele que, olhando ao longe, está certo de não o alcançar. “É o amor”, digo pacientemente. Mas que amor, sendo ou não verdadeiro, não vale bem uma infelicidade? O amor feliz e infeliz não cabe num só verbete (é “coxa, fúria, cabala”). O amor, não.
Infelicidade é táctil, presente, inconfundível. Desdobra-se em infinitos e precisos modos singulares, um olhar, um gosto, um cheiro. Sua gramática precisa nos põe a salvo das confusões de um mundo feliz, que de tão confuso, sequer imagina-se. Infelizes, afinal, não há como não nos entendermos.
( – De resto asseguro não pretender ser feliz).

Memórias de um Pornógrafo

Toda ciência tem seu objeto, seus métodos e seus dogmas. A opção pelo inacabado e pelo precário, a opção pelo sugerido pode parecer indicar a não necessidade de um método e o desprezo pela ciência. As aparências enganam. A displicência, o improviso, o acaso podem ser outras tantas ciências cujos axiomas esperam, ocultos, por seu descobrimento.

O gesto – e o adiciono a um possível inventário – é a suprema ciência oculta da pornografia. Um levantar de dedos tem o poder de provocar inesperadas irrupções corpóreas, pode subjugar a mais irrepreensível vontade. O gesto pornográfico encerra todo um mistério.
A geometria em questão não exige, entretanto, tantos circunlóquios. Às vezes canso-me de mim mesmo (com freqüência), às vezes canso-me da pornografia. Ainda sim, a pouca ciência que professo tem seus objetos mais ou menos certos, talvez pouco acertados. Não unificados em seu próprio conceito de objeto, mas já apontando um caminho e uma direção. A pornografia é o exercício de uma ciência oculta, mas que não revela o sobrenatural, a antimatéria, o transcendente, o ectoplasma de vidas futuras e passadas. Revela antes os segredos da matéria, a transigência da matéria, o que mais secretamente impregna a matéria, o abscôndito do tato, o misterioso desejo das superfícies. A matéria é a nossa verdade mais familiar. Procurar corpos prontos, corpos postos, bem postos, acabados, compostos de corpos, corpos em festa: a pornografia é o itinerário abstrato de todos os corpos. (Desvendar um corpo é negar-lhe um rosto).

Saí de casa pornográfico, pleno de disposições insondáveis. Encontrei Ana Lúcia. O rosto muito bonito, mas não excepcional. Os cabelos um pouco curtos demais, mas compridos o suficiente para que um coque inesperado nasça misterioso da arte que apenas ela domina. O nariz ligeiramente aquilino, com uma curva de ângulo suave. Penso obsessivamente nela há uma semana – no modo como anda, no seu olhar, em como mexe os lábios para insinuar algum segredo de polichinelo –, há uma semana nada existe, apenas sua boca bem desenhada. Sinto os efeitos de uma força irresistível que me atrai para ela, na direção dela, para ouvir sua voz – é a tua presença. Nas próximas duas semanas nada vai acontecer. Mas imaginarei insistentemente em cada um destes dias o imponderável, aquilo que só o desejo entende. A cada dia e todo o dia cultivarei a imagem imprópria de uma aproximação, de um toque, de um beijo, de uma inesperada palavra. O seu sorriso freqüentemente contido por vezes escapa por entre os lábios, mas escapa contidamente, com uma discrição especial que revela ocultando. O olhar sombreado guarda uma promessa de luz que virá um dia (tenho certeza) inesperadamente. Em cada um destes dias a imaginação passará pelo cruel teste do presente, e eu sentindo-a logo ali, viva e tão viva, os lábios frescos, estarei pronto a aprender as duras lições da realidade e da imaginação. (Ana Lúcia, fala). A imaginação é o manual do pornógrafo – todos os segredos das mulheres estão em como elas dispõem de seus pés, quais sapatos escolhem, como cuidam desta toalete secreta. (Ana Lúcia, venha).

O avesso de mim mesmo persegue-me, e desejo, e sinto-me pilotando uma máquina de desejar, do lado de fora da cabine de comando, acompanhando os movimentos da parafernália que lhe dá direção apenas com uma leve intuição sobre o que virá. Como olhando os pés de Cláudia, as linhas que seguem do tornozelo até o calcanhar, a cor particular de sua pele, fina, tresmalhada, e de tal modo sentindo-me íntimo daquele específico pedaço dela que, naquele instante, quase senti seu cheiro, amplificado pela minha imaginação, como improvável memória de toda ela, de todos seus cheiros possíveis, como se meu único ofício fosse especializar-me nela. Um cheiro que fosse mais que uma marca, que fosse a tradução sensível e imediata de uma personalidade. Esta é Cláudia que desejo seguidamente todas as tardes. E não decifro. E não me canso de desejar. A intimidade é antipornográfica.

Talvez o que mais me aborreça e me disperse seja a multidão de impressões que me invade. Tantos corpos, passos, mãos, bocas, uma única idéia de desejo acomodada neste corpo de possibilidade limitadas. Não, também isso não me interessa: o que me interessa é a essência mesma da pornografia, mais que qualquer outro ímpeto ou impulso, é a coisa ela mesma que procuro, no olhar, no gesto, na feição pornográfica. A intimidade é o rosto. Eis o rosto, este rosto, que chora, ri, lamenta, se surpreende, resumo certeiro da intimidade: ultrapasso-o e encontro o anônimo olhar pornográfico como quem descobre uma jóia, e no beijo pornográfico, a vitória definitiva da carne. (Desvendar um corpo e negar-lhe um rosto).

A pornografia cura-me da falta que a realidade que me faz. Procuro a realidade em vários e tantos lugares – raramente a encontro. A realidade é uma obsessão pornográfica. Demoro-me na pornografia: lá tudo tem a obrigação da presença. Acordo pornográfico, bocejo pornográfico, escovo os dentes pornográfico, absorto em minha irrealidade, apenas resta-me o corpo. Aquele entre tantos outros desperta-me. Entre tantas imagens de corpos, partes de corpos, rostos disformes em transe anônimo, deveria eu fazer a fatídica pergunta sobre a pornografia: o que é? Qual sua natureza? Qual seu motivo profundo?
Antes de responder (se é que me cabe respostas) faço outra das perguntas essenciais da pornografia: qual a marca necessária do corpo pornográfico, quais os corpos usados e expostos estão livres da maldição pornográfica?

Quatro mulheres em um quarto branco, quatro corpos especialmente únicos, quase nus, ou já nus, cada corpo sendo único e sendo todos, explorado à exaustão, senhor e escravo de uma paixão pornográfica, desperta o seguinte (o pornógrafo vê, compara, deseja – o desejo se comunica por todos corpos como uma epidemia selvagem e incontrolável): pele, tez, coxas, rostos, os botões em flor dos peitos – quatro vezes quatro já são todas as mulheres do mundo. Eis as quatro graças, as quatro ninfas, as quatro nereidas, as quatro sabinas, as quatro medusas, as quatro aranhas, as quatro bundas, vezes dois, quatro cus que nos libertem dos pecados de Sodoma e Gomorra, quatro pares de mãos (quatro delícias vezes dois), quatro bocas. Eis que o quatro não é número cabalístico, é número pornográfico – devassidão, libertinagem, pornéia, pornófago, pornocracia, pornologia, as definições confundem-se como as partes de um corpo em plena atividade pornográfica – “meus irmãos não quereis ser pornográficos?” (E em cada praia tereis dois, três, quatro, sete corpos de Adalgisa, a lisa, a fria, a quente, a áspera Adalgisa, numerosa qual o amor).

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