segunda-feira, 16 de abril de 2012

Jeanne Moreau, sorridente e doce, François Trauffaut.


Jeanne Moreau – sorridente e doce, segundo François Trauffaut (trad. AOTC)


A mulher é apaixonada, a atriz, apaixonante. Cada vez que te imagino à distancia, não a vejo lendo um jornal, mas um livro, pois Jeanne Moreau não me faz pensar no flerte, me faz pensar no amor.

Ao oposto de tantos atores e atrizes que não conseguem representar senão pelo conflito e pela tensão, a ponto de confundir concentração com os campos de sinistra memória, Jeanne Moreau só está à vontade em um ambiente de trabalho sorridente e doce, que ele contribui a criar e que ela ajuda a preservar, mesmo quando se trata de projetar emoções fortes.

Generosidade, ardor, cumplicidade, compreensão da fragilidade humana, tudo pode se ler na tela quando Jeanne Moreau atua.

De dentro de meus vinte anos de cinema, a filmagem de Jules e Jim, graças a Jeanne Moreau, permanece uma lembrança luminosa, a mais luminosa.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

As duas inglesas e o continente





As duas inglesas e o continente



As duas inglesas e o continente. (Na versão brasileira: As duas inglesas e o amor)

Houve um tempo em que havia romances, não só escritos. E quem não se lembraria do último romance lido (havia um tempo em que se liam romances) quando se depara com a primeira seqüência do filme de Trauffaut – As duas inglesas e o continente, François Trauffaut, 1971 ? Lá , ao abrir a primeira página, quebrando a lombada, e violando o acomodado recolhimento do volume, descobrimos (rememoramos) aquele vago frescor de uma história do século XIX, o encanto de um aventura, e a aventura de um ou vários amores – o amor, seja como for, é o amor. Mas não é só isso. Pode-se dizer facilmente que o filme de Truffaut se abre como quem abre um grande romance: por detrás da capa da Colection Blanche da NRF, Les deux anglaises et le continent, Henri-Pierre Roché, Trauffaut não filma apenas uma história, ele filma também a delicada emoção de quem filma uma história. A história está lá: não apenas a apresentação dos protagonistas à maneira de Balzac, por exemplo, há também os cortes em capítulos, na forma especial de fade in/fade out que marca a passagem de um episódio a outro, estruturando o desenrolar da trama.
Diante disso, caberia, agora sim, uma primeira pergunta:
quem é Claude, quem é Bertrant, quem é Jules, quem é Jim, quem é Henri-Pierre Roché, quem é Jean Pierre Léaud? Quem é, afinal, François Trauffaut? Estão lá desde o início, como a promessa de que uma utopia amorosa será enfim cumprida. Todos, tantas variações possíveis de Trauffaut e seu artesanato, de se fazer amado e amante, mas de uma maneira de tal modo precisa e certeira que se permite passar ao largo da inveja masculina – mais comum do que se imagina – e do desprezo feminino – normalmente irremediável. Diria, qual o segredo desse artesanato sentimental, para nos aproximarmos ainda mais do assunto e do filme?, mas tudo, nesse caso, é pouco para entender o quanto de todo sentimento o amor à gelatina de prata em 35mm pode conter e expressar: amor pelo cinema na exata medida do amor pelo amor, quem sabe. Este é Trauffaut. A frase é forte e merece correção: é este o Truffaut que se deixa imaginar. Todos os heróis de Trauffaut estão irmanados no esforço de pensar o que podemos simplesmente chamar de as inconstâncias do coração (e abro e fecho um parênteses para Antoine Doinel, que cabe menção mas não tratamento aqui, já que em seu caso, toda uma enciclopédia sentimental não basta). E todos “cavaleurs” tímidos, cafastestes transcendentais, mulherengos líricos, hommes à femmes vorazes e afetivos, e todos delicados em seus respectivos imensos corações. E não se falava de utopia, afinal de contas? Que o mesmo se diga, entre parênteses, para as suas heroínas, todas determinadas e tenazes como as heroínas de Sthendal, para quem o exercício da liberdade reinventa e completa o exercício de ser simplesmente quem é, quando se ama.
Voltemos a esta constelação de heróis tão improváveis: tão absurdamente apaixonados por todas, tão absurdamente sinceros, tão cuidadosos às variações do coração, que surpreendem a nós, submetidos ao escasso regime do real, o quanto pode um coração, antes que estale.
Essas divagações românticas, porém, são tão anacrônicas, tão fora de propósito que merecem uma explicação. E lá vem os burocratas de plantão, aqueles mesmo que mandam a mesma carta de amor para todas as namoradas, a reclamar de tanto coração, de tanto sentimento, de tanto romance do século XIX, em nosso mundo tão século XXI. Que sentido ainda teria um “coração sentimental” no apogeu dessa falta de graça?
Ainda sim, vou ao ponto: duas inglesas e o continente (Les deux anglaise et le continent, 1971, François Truffaut). O amor não é planeta habitado ou inabitado, não é galáxia distante, território ocupado em Marte, ou quarto de recreação na Estação Espacial Internacional. É continente permanentemente inexplorado, por mais que sobrem “terra à vista” a quem supõe lhe avistar do tombadilho. E paradoxalmente território submetido a mais cruenta das explorações, sujeito a imensa pressão predatória, a última fronteira natural da imaginação. O amor, seja como for (mais uma vez) é o amor, mas aqui não tão simplesmente amor: é o continente amoroso e história de amor que se alcança pelo mar do norte tanto quanto uma ilha que se torna continente – todos os lugares do mundo resumidos em um pedaço sem graça da mais fria e cinza praia no País de Gales. Mais uma das típicas inversões que a idade do amor permite. Logo, não são apenas as duas inglesas que descobrem o continente do amor. Também o jovem continental, muito francês, mas fantástico a maneira fantástica de um Léaud, como se espera, descobre o amor à ilha e leva-o para o continente. Não amor das ninfas da ilha enamorada, ou de alguma ilha mítica a meio caminho de Ítaca, caso algum mito ainda perdure; mas o amor de irmãs, o amor às irmãs, o amor de amantes e o amor das amantes, e de irmãs que fazem às vezes de amantes e são amadas, às vezes como irmãs, às vezes como amantes. E o amor dos homens também, à maneira dos homens e à maneira de homem, sempre meio aborrecidos. A primeira lição da idade adulta não é aquele que sem maneiras nos informa que o amor acaba. E descobrir que, afinal, envelhecemos. E tudo acaba.
Este filme, romance de formação sentimental das inglesas, Anne e Muriel, e de Claude, começa e se desenvolve como se fosse um romance clássico do XIX, e ficamos entre Sthendal e Balzac, imaginando o dia que Léaud será Lucien de Rubempré. Mas não se trata apenas disso. Há também, na mera história romântica do século XIX, algo de vivamente contemporâneo e não conformista, algo que ainda podia ser dito como se fora palavra de ordem: ainda há vida antes da morte. Pois lá, os pendores do coração, os desassossegos da alma e do corpo, o sublime que nos escapa entre as mãos, as vontades irracionais e inofensivas, lá, digo, tudo é legítimo, sem receita médica, mantra oriental ou conselho de programa vespertino. Lá, entre o amor e o canal da Mancha, a vida ainda pode ser vivida.
A meio caminho, entre “Jules e Jim” (1961), inventivo e invenção da crista da nova onda, avant guard em vários sentidos, e ainda com a presença magnética de uma Jeanne Moureau sublime, e “O homem que amava as mulheres” (1977), aparentemente mais convencional no tratamento de um tema não convencional, mais “hitchcteano” que literário; “As duas inglesas e o continente” revela o meticuloso tratamento de um filme a uma narrativa de formação sentimental, a partir de um trio, Anne, Muriel e Claude, com a delicadeza de quem olha o mistério do sentimento por dentro, por dentro de si e por dentro do outro.
Sem nenhum recurso excepcional, sem nenhuma invenção surpreendente, Trauffaut vai intercalando à narrativa romanesca, à ação no seu sentido mais lato, profundas digressões ou comentários narrativos – o que lembra em algo o procedimento narrativo do filme que fez com Goddard antes de fama e Cannes, na ocasião da última grande enchente de Paris – que não são simplesmente ilustração da história e da ação propriamente dita, mas a própria história contada pela imagem da história, na medida em que a digressão é o próprio sentimento e o sentimento é uma forma sofisticada de digressão à vida. A história é sempre e desde sempre história sentimental: do conhecimento de Anne, por sob um véu que, ao revelá-la aos poucos, revela o segredo de tudo que é sentido e amado e de tudo que será, já ali, no que é. Esse mesmo olhar que volta inúmeras vezes, em vários contextos e situações, lembrando que a calidez de Anne é a da própria história. Revela também que o amado e o sentido podem vir aos poucos, e sem precisão, como a foto de Muriel, com seu olhar “selvagem”, e eis os dois olhares, no início do filme que marcam o formam o olhar de Claude. O continente aprende a ver com as ilhas. Nem só de olhar de ressaca, com sua vaga negra, funda e destruidora, vive o regime natural do amor. Pode também ser maré cheia, que vem subindo, tomando todo o espaço da planície do coração, uma maré lenta e definitiva, que transforma em mar a terra firme, e aí, navegar é preciso. O amor, seja como for, é o amor (de novo !?). Esse detalhe, presente na feitura do filme, de tão simples, é supreendente: do recorte para a apresentação de Anne sob o véu, - quem é aquela, logo ali, na sala de minha casa - do “beijo de freira”, já no país de gales, em que a música destaca a cena do prosaísmo de origem da brincadeira, dando-lhe uma dimensão única; do longo plano seqüência no lago suíço, a partir do lago, tendo como fundo as margens, tomando o chalé em que Claude e Anne terão sua primeira noite, o ponto zero de um eixo de abcissas e coordenadas sentimentais, que de algum modo orientará toda a vida. A digressão é o solo narrativo, por excelência, de “Duas inglesas e o continente” e ao intercalar a “história” e a imagem que a própria história destaca de si, mostra que a história de um coração é tão elíptica, tão tortuosa, tão cheia de meandros que... quase não é história.
E a história fica por aqui, porque dela mais não conto. Está tudo no filme, para ser visto e revisto. Para encerrar, lembro a cena final, marcante e melancólica: é Claude, ao ver seu reflexo no vidro do carro: envelheci. E poderia completar: o direito a velhice só deveria valer para os que viveram. E são tão poucos os que vivem.


As Duas Inglesas e o Amor/Les Deux Anglaises et le Continent
De François Truffaut, França, 1971
Com Jean-Pierre Léaud, Kika Markham, Stacey Tendeter, Marie Mansard, Sylvia Marriott
Adaptação e diálogos François Truffaut e Jean Gruault
Baseado no romance de Henri-Pierre Roché
Fotografia Nestor Almendros
Música Georges Delerue
Produção Les Films de Carrosse
Cor, 130 minutos (versão original do diretor), 116 minutos (versão exibida na França), 108 minutos (versão exibida nos EUA)
R, ***1/2
Título em Portugal: As Duas Inglesas e o Continente; em inglês, Two English Girls.