A timidez sempre me assustou. Era como se eu,
com minha timidez, fosse um amante impossível, como se ela estivesse aí, a me
lembrar, de que não conseguiria cumprir esse destino inventado. Claro que não
acredito mais nas minhas ilusões de juventude, amor, poder, glória, elegância,
distinção. Claro que sobrou um nada incompreensível disso tudo. Meu amor não
resiste aos fatos. Meu primeiro beijo foi em Carla, de quem sempre gostei do
nome e, no geral, sempre achei muito bonita. Ela morava perto de casa e
trocávamos cartas por meio de um amigo, imbuído da função de cupido. Como é
inusitado pensar nisso nesses dias que qualquer informação está sob o
permanente risco de violação. Havia um tempo que os sigilos do amor eram
invioláveis. As cartas sempre chegavam com um certo perfume, que depois vim a
descobrir que era o de um sabonete que ele esfregava no papel almaço. Não sei quanto tempo durou, mas Carla foi a
descoberta do beijo e é dela toda minha pré-história do beijo, todo beijo que
dei traz uma marca daqueles primeiros beijos, daquele aprendizado do beijo. A
ciência do beijo pode resumir toda a educação sentimental necessário ao homem
médio: você aprende o tempo de se aproximar, a geometria do toque e da atenção,
e a proximidade absoluta da experiência do beijo e o silêncio que se segue (o
beijo consumado dispensa a palavra). O mistério do beijo suspendeu minha
atenção para o que viria depois. O beijo (quase) sempre é a melhor parte. Esse
enigma monopolizou minha vida por muito tempo. Parei repentinamente no beijo,
fiz toda uma filosofia do beijo. O beijo foi uma suprema conquista, mas em um
tempo que se barateava o beijo, em um tempo que o beijo foi reduzido a um
formalismo vazio, querer dar-lhe ares de cerimônia, de ritual, era notável
contra-senso. Fui ficando demodê e ultrapassado. O beijo tornou-se sumário,
quase imediato, em um mundo frenético,
quando eu ainda o queria cheio de arabescos e maneirismos. Beijei Ana
Paula, Shirley, Fabiane, Clarice, Maria Luiza, Júlia, Jussara, Alessandra,
outra Carla, Cilene, outra Alessandra, dua Andréias, uma Juliana e quase beijei
uma Marcela, uma Érica e uma outra Juliana, mais Juliana que a primeira, e que
ainda me assombra com a possibilidade de um beijo beijo, o que me traz certos
arrependimentos. De fato, arrependo-me de muitas coisas. Marcela sumiu, em meio
a tantas outras coisas, Juliana se casou, Carla faz de conta que não me
conhece, se é que me vê quando ainda me vê.
E, em meio a um desamparo profundo que senti por volta dos 17 anos, o
beijo passou de minha filosofia a minha religião. Sem saber explicar muito o
porquê, fiquei para trás. Não cresci como meus colegas de escola, demorei muito
a crescer. Vivia ainda as voltas com o beijo. Fiquei congelado em uma
precocidade obsoleta. Dei um último beijo ingênuo em outra Alessandra, um beijo
como eu gostaria de dar, ao meu estilo: cerimonioso, ritual, entusiasmado, em
meio a promessas impossíveis e realizações improváveis. Esse beijo
reforçou minhas observações teóricas e
práticas sobre beijo, mas como não havia investido sabedoria e conhecimento
suficientes no pós-beijo, ele foi uma espécie de teto das minhas aventuras
adolescentes e galantes. Era o menino que recusava o homem. Daí descobri o
pós-beijo, o mistério por detrás do mistério. E isso só foi com Ana Cristina.
A primeira vez que a vi, não me interessei imediatamente.
Sim, ela era bonita e muito, dois pré-requisitos para qualquer olhar. Mas eu vivia
muito vago com meus problemas teóricos ainda em torno do beijo. Começamos a
sair juntos um pouco como quase namorados, tínhamos amigos em comum, mas havia
uma distância entre nós que parecia intransponível. Era a distância do beijo,
posso hoje profetizar. O antes do beijo é um abismo. O depois do beijo é uma
planíce. Foi aí que aprendi outro beijo: o beijo que não é fim em si, a coisa
ela mesma, mas do beijo que é começo e partida, o beijo que abre o parágrafo. E
foram cinco anos de Ana Cristina. O primeiro beijo em Ana abriu-me também
desvãos de uma paixão que eu não esperava – era o efeito novo, na forma de
novos afetos, de um beijo absolutamente novo. Jovens, inexperientes, agitados,
podíamos ser o que quiséssemos. Durante três anos vivemos longe um do outro.
Com a distância, fomos preenchendo o
outro com o que imaginávamos de melhor, de mais terno e carinhoso. Por fim,
houve um grande desencontro. É curioso como hoje penso em Ana. Todos a chamavam
de Cristina ou Cris, eu era o único que a chamava de Aninha ou Morena, por amor
à diferença e ao absurdo, já que ela era loira. Quando terminamos, Ana teve um
curto enlace com meu ex-melhor amigo. O que naturalmente não me deu muitas alegrias. Fiquei talvez
três anos triste, um pouco sem direção, depois de Ana. Depois de Ana, todo o
mundo precisou de uma nova teoria. Viva a injustiça de acreditar que, se não
havia dado certo com ela, não daria certo com ninguém. Senti muita falta dela,
mas de um jeito egoísta: não via como nossa história poderia continuar, parecia-me
mesmo muito encerrada, mas acreditava que ela
deveria voltar para me consolar da nossa impossibilidade. Mas ninguém
voltou. Nunca mais a vi. Subitamente voltei a pensar com carinho nela, como se
pensasse em algo conforme a um contorno definido. Uma Ana que passou, em torno
da qual amei acreditando amar, quando ainda aprendia coisas que, finalmente,
nunca se aprende, nunca se aprende. Poderia dizer que há uma certa Ana Cristina, olhos
verdes, uma graça menineira, delicada, mais que hoje me escapa,
na forma de uma desenho lembrado mas cujos destalhes a escala não permite mais
ver. Não sei mais o que é, sei que ainda está aí, em algum lugar. Deu-me um certo conforto pensá-la segundo o
contorno definido do tempo, passado passado e presente. E se sofri, se houve o pavor de um desconhecido imenso que deveria
enfrentar na sua ausência, de um mundo que, ainda tão jovem, negara-me
definitivamente o amor, segundo as impressões trágica que tinha das coisas e,
em parte, conservo; o mundo não foi tão mau assim, o mundo não foi tão cruel
assim, foi apenas quase indiferente. O amor, ou a impressão do amor, volta sob
diversas formas. E não convém as listas, os arquivos, as anotações de datas, os
registros contábeis. Minha intenção não é
escrever um arrazoado ou um repertório da minhas tentativas em terreno
tão movediço, como se a "experiência" se acumulasse quando a "experiência" só desmente a experiência. As tentativas do amor às vezes nem tentativas são, são quase
tentativas, acúmulo de erros repetidos em nome da esperança tão vã de não mais errar.
Descobrir o mistério de tantas tentativas, o que as une, o amor como uma
deliciosa falta que nos apavora e assusta também não ensina nem justifica nada.
É apenas uma forma um pouco mais cética de esperança. Imagino em mim o menino
que amou e que ama, se ele ainda ama. E se ele ama, o que imagina?
Uma esperança, entretanto, me anima. Uma esperança profunda (que também é uma compensação em relação a tantos maus hábitos acumulados). A esperança abra as portas, mas não ensina os caminhos. Poderia chamá-la de qualquer nome. Terá nome inventado. E nenhuma invenção é gratuita e invento obedecendo a ordem necessária dos meus afetos tão díspares. A chamarei Laura, porque já é um belo nome, porque conheci uma Laura que vale um poema, e porque há essa Laura conhecida me chamou e sorriu sem que eu pedisse ou esperasse, uma Laura perdida, jamais encontrada, como tantas Lauras. Essa Laura inventada pela atribuição de um nome é muito mais formosa que a Laura Laura conhecida. Mas como não sei se sua doçura é equivalente a da primeira, (a imagem é uma promessa), sua beleza indiferentemente bela – tremendamente bela – compensa o gosto que não sinto, mas imagino. Ele é a mensagem que espero de uma beleza tal que se ama sem se saber o quê – prosaica na forma, infinita no alcance – e é justo por isso que salvo, conquisto e sequestro sua imagem dando um nome definitivo – e és Laura, e eu, Don Juan imaginário. Minha esperança é, ainda que não ame, imaginar que amo