terça-feira, 13 de novembro de 2012

Opereta do Falso Fernando Pessoa II.

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A timidez sempre me assustou. Era como se eu, com minha timidez, fosse um amante impossível, como se ela estivesse aí, a me lembrar, de que não conseguiria cumprir esse destino inventado. Claro que não acredito mais nas minhas ilusões de juventude, amor, poder, glória, elegância, distinção. Claro que sobrou um nada incompreensível disso tudo. Meu amor não resiste aos fatos. Meu primeiro beijo foi em Carla, de quem sempre gostei do nome e, no geral, sempre achei muito bonita. Ela morava perto de casa e trocávamos cartas por meio de um amigo, imbuído da função de cupido. Como é inusitado pensar nisso nesses dias que qualquer informação está sob o permanente risco de violação. Havia um tempo que os sigilos do amor eram invioláveis. As cartas sempre chegavam com um certo perfume, que depois vim a descobrir que era o de um sabonete que ele esfregava no papel almaço.  Não sei quanto tempo durou, mas Carla foi a descoberta do beijo e é dela toda minha pré-história do beijo, todo beijo que dei traz uma marca daqueles primeiros beijos, daquele aprendizado do beijo. A ciência do beijo pode resumir toda a educação sentimental necessário ao homem médio: você aprende o tempo de se aproximar, a geometria do toque e da atenção, e a proximidade absoluta da experiência do beijo e o silêncio que se segue (o beijo consumado dispensa a palavra). O mistério do beijo suspendeu minha atenção para o que viria depois. O beijo (quase) sempre é a melhor parte. Esse enigma monopolizou minha vida por muito tempo. Parei repentinamente no beijo, fiz toda uma filosofia do beijo. O beijo foi uma suprema conquista, mas em um tempo que se barateava o beijo, em um tempo que o beijo foi reduzido a um formalismo vazio, querer dar-lhe ares de cerimônia, de ritual, era notável contra-senso. Fui ficando demodê e ultrapassado. O beijo tornou-se sumário, quase imediato, em um mundo frenético,  quando eu ainda o queria cheio de arabescos e maneirismos. Beijei Ana Paula, Shirley, Fabiane, Clarice, Maria Luiza, Júlia, Jussara, Alessandra, outra Carla, Cilene, outra Alessandra, dua Andréias, uma Juliana e quase beijei uma Marcela, uma Érica e uma outra Juliana, mais Juliana que a primeira, e que ainda me assombra com a possibilidade de um beijo beijo, o que me traz certos arrependimentos. De fato, arrependo-me de muitas coisas. Marcela sumiu, em meio a tantas outras coisas, Juliana se casou, Carla faz de conta que não me conhece, se é que me vê quando ainda me vê.  E, em meio a um desamparo profundo que senti por volta dos 17 anos, o beijo passou de minha filosofia a minha religião. Sem saber explicar muito o porquê, fiquei para trás. Não cresci como meus colegas de escola, demorei muito a crescer. Vivia ainda as voltas com o beijo. Fiquei congelado em uma precocidade obsoleta. Dei um último beijo ingênuo em outra Alessandra, um beijo como eu gostaria de dar, ao meu estilo: cerimonioso, ritual, entusiasmado, em meio a promessas impossíveis e realizações improváveis. Esse beijo reforçou  minhas observações teóricas e práticas sobre beijo, mas como não havia investido sabedoria e conhecimento suficientes no pós-beijo, ele foi uma espécie de teto das minhas aventuras adolescentes e galantes. Era o menino que recusava o homem. Daí descobri o pós-beijo, o mistério por detrás do mistério. E isso só foi com Ana Cristina.

A primeira vez que a vi, não me interessei imediatamente. Sim, ela era bonita e muito, dois pré-requisitos para qualquer olhar. Mas eu vivia muito vago com meus problemas teóricos ainda em torno do beijo. Começamos a sair juntos um pouco como quase namorados, tínhamos amigos em comum, mas havia uma distância entre nós que parecia intransponível. Era a distância do beijo, posso hoje profetizar. O antes do beijo é um abismo. O depois do beijo é uma planíce. Foi aí que aprendi outro beijo: o beijo que não é fim em si, a coisa ela mesma, mas do beijo que é começo e partida, o beijo que abre o parágrafo. E foram cinco anos de Ana Cristina. O primeiro beijo em Ana abriu-me também desvãos de uma paixão que eu não esperava – era o efeito novo, na forma de novos afetos, de um beijo absolutamente novo. Jovens, inexperientes, agitados, podíamos ser o que quiséssemos. Durante três anos vivemos longe um do outro. Com a distância, fomos  preenchendo o outro com o que imaginávamos de melhor, de mais terno e carinhoso. Por fim, houve um grande desencontro. É curioso como hoje penso em Ana. Todos a chamavam de Cristina ou Cris, eu era o único que a chamava de Aninha ou Morena, por amor à diferença e ao absurdo, já que ela era loira. Quando terminamos, Ana teve um curto enlace com meu ex-melhor amigo. O que naturalmente  não me deu muitas alegrias. Fiquei talvez três anos triste, um pouco sem direção, depois de Ana. Depois de Ana, todo o mundo precisou de uma nova teoria. Viva a injustiça de acreditar que, se não havia dado certo com ela, não daria certo com ninguém. Senti muita falta dela, mas de um jeito egoísta: não via como nossa história poderia continuar, parecia-me mesmo muito encerrada, mas acreditava que ela  deveria voltar para me consolar da nossa impossibilidade. Mas ninguém voltou. Nunca mais a vi. Subitamente voltei a pensar com carinho nela, como se pensasse em algo conforme a um contorno definido. Uma Ana que passou, em torno da qual amei acreditando amar, quando ainda aprendia coisas que, finalmente, nunca se aprende, nunca se aprende. Poderia dizer que há uma certa Ana Cristina, olhos verdes, uma graça menineira, delicada, mais que hoje me escapa, na forma de uma desenho lembrado mas cujos destalhes a escala não permite mais ver. Não sei mais o que é, sei que ainda está aí, em algum lugar.  Deu-me um certo conforto pensá-la segundo o contorno definido do tempo, passado passado e presente. E se sofri, se houve o  pavor de um desconhecido imenso que deveria enfrentar na sua ausência, de um mundo que, ainda tão jovem, negara-me definitivamente o amor, segundo as impressões trágica que tinha das coisas e, em parte, conservo; o mundo não foi tão mau assim, o mundo não foi tão cruel assim, foi apenas quase indiferente. O amor, ou a impressão do amor, volta sob diversas formas. E não convém as listas, os arquivos, as anotações de datas, os registros contábeis. Minha intenção não é  escrever um arrazoado ou um repertório da minhas tentativas em terreno tão movediço, como se a "experiência" se acumulasse quando a "experiência" só desmente a experiência. As tentativas do amor às vezes nem tentativas são, são quase tentativas, acúmulo de erros repetidos em nome da esperança tão vã de não mais errar. Descobrir o mistério de tantas tentativas, o que as une, o amor como uma deliciosa falta que nos apavora e assusta também não ensina nem justifica nada. É apenas uma forma um pouco mais cética de esperança. Imagino em mim o menino que amou e que ama, se ele ainda ama. E se ele ama, o que imagina?

Uma esperança, entretanto, me anima. Uma esperança profunda (que também é uma compensação em relação a tantos maus hábitos acumulados). A esperança abra as portas, mas não ensina os caminhos. Poderia chamá-la de qualquer nome.  Terá nome inventado. E nenhuma invenção é gratuita e invento obedecendo a ordem necessária dos meus afetos tão díspares. A chamarei Laura, porque já é um belo nome, porque conheci uma Laura que vale um poema, e porque há essa Laura conhecida  me chamou e sorriu sem que eu pedisse ou esperasse, uma Laura perdida, jamais encontrada, como tantas Lauras. Essa Laura inventada pela atribuição de um nome é muito mais formosa que a Laura Laura conhecida. Mas como não sei se sua doçura é equivalente a da primeira, (a imagem é uma promessa), sua beleza indiferentemente bela – tremendamente bela – compensa o gosto que não sinto, mas imagino. Ele é a mensagem que espero de uma beleza tal que se ama sem se saber o quê – prosaica na forma, infinita no alcance – e é justo por isso que salvo, conquisto e sequestro sua imagem dando um nome definitivo – e és Laura, e eu, Don Juan imaginário. Minha esperança é, ainda que não ame,  imaginar que amo

Opereta do falso Fernando Pessoa.



Por algum tempo acreditei que amar era um tipo de dom que me tornava especial. Sentia-me não apenas conhecedor do amor, mas infalível praticante (quando o acaso assim me permitia). Sentia-me propenso a amar muito e melhor que qualquer outro, em minha auto-imagem amorosa e isso funcionava como um consolo tardio a uma série de inabilidades que acumulava na vida abstrata  que foi se inventando em mim. Poucos amigos, pouca diversão, pouca alegria, uma espécie de solidão forçada tornada mania, uma recusa se generalizando, um apelo insistente pelo não. Não seio de onde veio esse não, como forma de vida, mania e deleite, essa recusa impertinente, mas de repente ela estava comigo por todos os lugares em que andava. Mas meu hábito soturno, retraído, não era proposital ou nunca se pretendeu assim. Todo adulto tímido guarda algum segredo de criança. Meus segredos de infância são as invenções do adulto: minha casa da infância é uma lembrança secreta. O quarto grande no final do corredor, piso de taco escuro, as paredes enormes, brancas, uma muralha para uma criança intromedita. Não sei se o quarto no final do corredor era o meu ou o dos meus pais, não tenho mais certezas sobre a disposição da infância naquela casa, ou melhor, a ciência geográfica de uma criança é sempre literatura fantástica. Ora meu quarto era o do final, e me lembro do esmalte branco da proteção lateral de minha cama que guardava meu sonho dos tombos que levaria acordado, ora me lembro de uma fresta de luz no quarto do meio do corredor, a sensação de não apenas estar ali, mas de ser ali, ainda um estranho em meu próprio mundo. Minha cama de fórmica, amarela e branca, o banheiro no começo do corredor. Um dia tomei banho com meu pai, e pedindo para tomar banho frio, lembro da resposta tímida e prudente de meu pai, evitando contrariar muito os caprichos de um menino de dois anos, o primeiro filho, “é muito frio filho”. Insisti e logo confirmei, “é frio mesmo pai”, não sem um certo maravilhamento pela descoberta do frio, ou redescoberta. Caminhava pela casa, e lembro-me de a conhecer, mas a lembro estranhamente escura, passando por meio da escuridão do corredor. Havia um quintal todo cimentado, mas com uma porção de terra reservada para plantar algo que nunca foi plantado. Uma janela grande e ampla na sala, por onde entrava a maior parte de luz da casa. Foi nesse mesmo quintal que aprendi a andar de bicicleta com alguém de quem já não me lembro o nome e era a sua maneira generoso e voluntarioso. Lembro-me da primeira sensação de equilíbrio, na bicicleta, descendo pela faixa de quintal que envolvia a casa, toda a resistência em se equilibrar, a dificuldade das coisas que é, afinal, o ajuste entre sua própria natureza e nossa própria natureza. Na cozinha, o aquário redondo com dois peixes alaranjados, de quem eu cuidava com muita displicência e a porta de ferro e vidro que dava para o quintal. O segredo da infância é continuar lembrando-se dela. Não sei, porém, quem era esse menino: na história desse segredo há apenas um estupor, um susto de ser menino naquela casa que já não existe mais. Hoje parece que sabia o quão pouco tudo duraria porque tudo mudaria repentinamente, e nos mudamos sem que eu afinal tivesse me acostumado com a casa e comigo. Na minha outra casa da infância tudo era diferente. Havia uma quintal selvagem, sem cimento, povoado de bichos. Meus  irmãos recolheram o mistério dos lugares para o mistério de nós mesmos: não sabia quem eles eram, não sabia quem eu havia sido. 
Custava-me ser assim, de modo que procurava em mim uma compensação para um mundo hostil que, se me habituara, não me confortava. Vivia desconfortavelmente, procurava uma saída imaginária para tantos problemas colocados e assim ia elaborando minhas teorias. A recorrente passava ou voltava, como quase todas, pela infância. Tenho uma imenso acervo de lembranças da infância: a infância não me abandona. Viagens com meus pais, a praça do clube do expedicionário, uma chamada de atenção de minha tia (vai ter baile no salão?), uma capa de super-herói (eu disposto a salvar o mundo da maldade). E como há maldade, meu deus. A piscina na escola, todos em algazarra em volta da piscina, correndo, barulho d'água misturado aos sons desencontrados das próprias crianças (acaso ainda resta alguma palavra inteligível, que escutei e já não me lembro? De mim, dos outros, da infância?), e o chamado da professora: vamos, vamos, vamos. Uma visita a fazenda, uma festa junina e um parquinho vago, escondido em algum canto da cidade que já não existe mais, mas tremendamente fantástico e sedutor: alguém sorria para mim enquanto estava na gangorra e deixava a gangorra e para ir ao cavalinho.
Houve um corte abrupto em minha vida: meus irmãos nasceram, nos mudamos de cidade, senti-me muito sozinho em meio a um mundo de repente estranho. Sem tias, sem visitas, sem o entusiasmo da uma família grande e cheia de defeitos, sem o cúmulo de afetos que a exclusividade me garantia, foi educado apenas pelos defeitos próximos de meu pai e de minha mãe, o que talvez me faça muito previsível. Passei pela experiência do ostracismo, fui sequestrado na infância e algo esquecido e quando alguns anos mais tarde meu pai me esqueceu na escola, em sentido próprio, tive a confirmação da incompreensível primeira lição da vida. Que ela pode acabar sem avisar. Todos podem ir embora a qualquer momento. As luzes se apagam. Nos encolhemos. E resta apenas uma respiração assustada. Somos todos frágeis. Os segredos da infância se perdem, os recuperamos e os perdemos novamente.
Com os ponteiros desajustados padeci da mesma tristeza que minha mãe, ficamos os dois tristes e sem consolo com a mudança. A propensão à tristeza de minha mãe talvez tenha alimentado a minha, mas seria demais talvez culpá-la de tudo isso. Reservo alguma originalidade a minha tristeza porque também tenho certos orgulhos. A estranheza do mundo começou dessa sucessão de fatos inesperados, ainda mais para alguém com relativa pouca experiência. No interior do país e do interior de mim mesmo não via as brincadeiras das outras crianças como um oportunidade de brincar também. Olhava os vizinhos curioso, fazendo festa, rindo, brincando, ansioso talvez para que me chamassem, mas com uma certa indiferença difícil, incompreensível. Sabia que não seria chamado. Via-os com a nostalgia de uma criança de muitos anos, como se eu fosse uma criança proibida pela minha tristeza e a de minha mãe, pelos problemas doméstico que em parte entendia, pela falta que me faziam minhas tias. Olhava as outras crianças do alto de minha experiência fantástica. Havia fantasticamente crescido e, um senhor de quatro anos avaliava com certo desdém os outros. A tristeza dessas sequência de acontecimentos alterou minha vida de criança, a tristeza fez a minha criança recolher-se e ver-se tão diferente, quase estranha a mim mesmo. Perdida a espontaneidade, viver como criança foi algo como uma espera por crescer. Nas viagens de ônibus pedia para me sentar sozinho – sempre sobra alguém em uma família impar. Já me preparava para minhas possibilidades de adulto. Eu adivinhava, com uma esperteza ingênua, que crescer seria melhor que viver interditado e à parte, como vivia então. Mas faltava ainda muito tempo para isso. O que faria durante, digamos, dez ou quinze anos? Aprendi também a esperar (o que me cansa, agora que sou velho, porque já esperei demais). Os velhos desaprendem a esperar porque esperaram muito ou porque já não tem mais tempo para esperar. Para aqueles que a velhice é só a última espera, sem fama, sem glória, sem sobriedade, sem conforto, a espera é apressada. O cansaço de que falo não não é aquele de quem fez algo, realizou algo. Mas o cansaço estéril das tentativas frustradas. Não estou aqui para falar do óbvio: essa velhice que me toma o corpo, marca o rosto e denuncia a doença. Estou aqui para falar das aventuras do que acreditei ser as do amor. O amor é antes de tudo uma fantasia íntima, uma fantasia de salvação. Amar, ser amado, apaixonar-se é crer no milagre do outro. E o milagre do outro só pode ser uma fantasia. Sei que você chama isso de outra coisa (loucura, frustração, erro, doença), mas no final vai me entender. Não vou falar ainda disso. Ela é o último capítulo. A velhice que vivo, entretanto, tem sim um último consolo: reconcilio-me com o menino que fui, olho para o homem que tentei ser. Não há alegria nisso, mas uma satisfação morna, um conforto quase calculado, uma resignação pacífica. O menino ainda quer brincar. O menino persevera.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

O Pornógrafo III.


O pornógrafo II.

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O pornógrafo.


Cuesta abajo.

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Diário da guerra do porco – Diário de la guerra del cerdo.

            Medir a idade das coisas não é simples. A ideia de antiguidade pode estar ontem, no último bocejo: quem era aquele ali, escovando os dentes? O mais estranho selvagem, de outras eras, em roupas de dormir?  As medidas das coisas e suas exigências nem sempre são fáceis. Quanto tempo se passou no relógio desde de que ele despretensiosamente começou a medir o tempo? O relógio finge, mas não despreza a passagem do tempo: é uma mecânica consciência de si, que se comunica com a linguagem pecular do tic-tac, tic-tac. Desde a primeira frase? Desde o último minuto? Foram vinte, trinta segundos. E agora, mais um e outro. Difícil saber (as horas contadas, nenhuma soma feita, resta quanto tempo?) o tempo das coisas.
As coisas talvez se impregnem de outro tempo. E o tempo medido e contado em calendários, relógios, aniversários e prestações fica presos nesses aparatos. Os anos conforme o calendário, dia a dia, são uma útil convenção, e não serei eu a negar pela enésima vez a utilidade das coisas, de todas as coisas, salvo as inúteis.  As convenções inventadas, entre tantos utensílios que vestimos e dispomos, e tantos cuidados possíveis com a higiene e a saúde foram certamente bem inventadas. É preciso mais do que aceitar esse mundo dos homens, é preciso lhe dar vivas e celebrar. Os meus pendores revolucionários param por aí, quer dizer, por lá, atrás, bem antes de qualquer revolução, possível, provável ou imponderável. Dizer, afinal, que,  às convenções escapa algo de essencial, é mais um desses clichês verdadeiros, sinal péssimo estilo  e vamos que o tempo passa. Mas lá, nem tudo na vida e nos textos são a pura poesia das esferas. prosa, notícias de jornal e bulas de remédio, com o texto incompreensível dos efeitos colaterais.
            Quanto tempo passou? Nos olhos da minha filha?
            Cada coisa medida e guardada, de repente, pode despertar  de outra era geológica, trazendo notícias de um outra civilização feita de amores e suspiros incompreensíveis, brigas épicas e inesperados pedidos de perdão. Não é só o homem olhando no espelho; é o homem atrás do espelho. Estes repertórios da narrativa íntima das coisas acabam preenchendo um tempo ao oriente do tempo e entre um traço e outro do mostrador do relógio um infinito caminho de tangos, milongas e brigas de amor. O que é isso? De onde vem esse vazio entre os vazios do que se vive muito simplesmente como homem, mulher, funcionário apressado, cartomante, pitonisa, cabeleireira, profeta amador ou dona de casa?
            Não é bem esse meu assunto (já falei isso ou deveria me repetir a esta altura?). Resisto pouco, porém, a que tais digressões. Não é raro lembrar a trivial ocasião em que entre dois ou três anos passam mil ou dois mil anos imaginários e imaginados (a volta, melhorado, do clichê), cheios de tantas idas e vindas, sustos, sopros, ideias brilhantes, sucessos possíveis e impossíveis e meia dúzia de fracassos retumbantes. Poderíamos chamar isso muito simplesmente de vidapor sua falta de simplicidade -, lembrando de que, por detrás da convenção e dos lugares das coisas, sobra um resto de tudo. peço desculpas: não pretendo ir tão longe com minha cômoda metafísica de bolso. Nem fazer a doutrina da lógica deste tempo inútil por detrás da trivialidade das coisas, do dia a dia e dos amores. Tudo pode ser tão somente a banalidade da carne, da nossa carne. Queria apenas pegá-lo a mão: o tempo que preenche o presente convencional de tudo é todo o tempo que temos diante de nós, numa estranha inversão de perspectiva: e quando este tempo repentinamente se estreita, não é nosso futuro que diminui, é nosso presente que se esmaece. Parece complicado, mas não é tanto assim. Os mil anos que passam entre um amor e outro, separado cronologicamente por míseros ano e meio, vem exclusivamente dos infinitos amores diante de nós, do tempo inesgotável para o amor, que, estando adiante, preenche o presente. E está ele, o amorque é bicho instruídorealizado por aquela figura fugidia, instável que, estando diante de nós, nos surpreende e nos fixa. Sua fonte é um infinito de tempo e de possibilidades.  
            Volto, enfim, ao assunto: e quando esse tempo vai cessando, as possibilidades escasseando, a imaginação das coisas repousando subitamente nas cronologia dos relógios, das goteiras e dos aborrecimentos de fim de mês? A velhice não é a morte das coisas, nem um imenso receituário de remédio, dores, recomendações de sono, banho e chinelos,  mas o fim de toda uma ordem da imaginação. Parece dramático e grandiloquentevolta meia sucumbo às minhas tentações metafísicas; a velhice é apenas trivialmente, modestamente dramática: tudo que depende do futuro para estar presente, cessa para o velho o tempo cessa de correr e se tem o incômodo da eternidade.  Alguém disse, mas não custa repetir: não vantagem nenhuma na velhice. Nem como lhe resistir.  A ela, nenhum apelo é válido. Perdemos algo muito preciso: o tempo que preenche o tempo com tudo de tudo, com a imagem volátil de todas as coisas na forma de planos, sonhos, amores e vontades impossíveis.
            Repenso o último parágrafo. Demais, infeliz, quase exagerado (o quase para o exagero talvez já seja exagero). O velho insulado em um presente  fechado, submetido ao tic-tac do relógio de todas as coisas, até que subitamente... Enfim, a velhice também é lugar do ressentimento e das paixões tristes.
            Detenho-me um pouco nas paixões triste, por cúmulo de tristeza: acomodado em chinelos, penso menos nos anos que passaram, mais naqueles que não passarão mais. Estou ficando velho.

(La aceptación de las proprias limitaciones eventualmente es una sabiduría triste). Diario de la guerra del cerdo, ABC.