Para ARL.
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Meu pai repetia a história de seus retornos do Rio de
Janeiro, segundas-feiras à tarde, ônibus vazio, estrada limpa. Nunca soube
exatamente o que ele teria ido fazer no Rio, mas parece que essa não era a
parte principal da história. A parte principal era a estrada, a surpresa do
ônibus vazio, a velocidade e a sensação de tudo que passa, desse ar de novidade
que de repente ganham as coisas, sem que se saiba muito o porquê. Depois da
Serra das Araras vem o Clube dos Quinhentos e depois o famigerado retão da
Dutra, e é o mito da velocidade máxima, com toda sua literatura subsidiária.
Havia nisso não sei que graça, uma graça inusitada, de ouvir. Hoje tento
recuperá-la não sabendo direito o que perdi. Mas sei. Quando muito menino meu
pai me levava para sua oficina mecânica, mas não me levava para ensinar alguma
coisa. Levava-me para que eu me sujasse ao meu estilo, entusiasmado de uma
alegria incontida, risonha. E eu me deslumbrava aqui e ali com as suas
ferramentas que não tinham, para minha sabedoria de dois anos, nenhuma
utilidade prática, senão a fantástica. E brincava de concertos imaginários e
fantásticos, possibilidades ilimitadas e ilusórias daqueles objetos, pelos
quais tinha uma leve adoração. Meu pai nunca me corrigiu. Deixava que eu
consertasse tudo que não tem ou prescinde de conserto pelo prazer de me ver
ali, talvez como a grande novidade da sua vida. Íamos tomar refrigerante ao bar
ao lado, e para mim era uma aventura de outra ordem, tudo era estranho e
curioso fora de casa, a começar pelo gás do refrigerante que inibia, e muito,
minha sede. Reputava um poder superior a capacidade de tomar assim, em grandes
goles quase ininterruptos, uma garrafa qualquer de refrigerante e repertoriava
esse a uma outra série de poderes típicos de meu pai. Lembro de meu olhar, de
dois anos, de menino curioso, e isso, de certo modo me comove. Vem-me não sei
que semelhança com outro olhar, que hoje mobiliza o meu, e me preocupa e me
anima e me acalma com sua graça menineira. No bar, o melhor era entretanto o
prazer da descoberta, da novidade: no bar, imenso conforme minha escala da
época, tudo aparecia estranho sob o fundo familiar que era a presença constante
de meu pai. A banqueta, que eu escavalava a custo, o balcão rosado, as prateleiras de bebida e o fato de o dono
do bar, que sequer imaginava ser o dono do bar, categoria que me escapava
completamente, chamar meu pai pelo nome, tudo, de certa maneira me assombrava,
me chamava a atenção e me seduzia. Era a descoberta do mundo, não tão mundo
assim, mas o mundo que havia. Estava
descobrindo tudo de tudo, em um bar bastante sem graça do interior do estado. E
estava com meu pai. Fala-se muito da morte do pai, simbólica e necessária, e da
carta ao pai, dura tal qual um pai de severidade extrema. Seriam expedientes
necessários ao crescimento e mesmo a civilização, supondo haver uma. Não padeço
desse mal, ainda que poderia fazer a lista de muitos outros, se fosse o caso.
Tento entender o porquê. A resposta não vai longe: de meu pai não herdei nem
time de futebol nem profissão. Parece bastante banal a constatação, mas não é.
Meu pai tomou o cuidado inédito em nunca dizer o que eu devia ser ou fazer,
salvo em ocasiões especiais e urgentes. Havia nisso e há nisso algo próximo do
intraduzível: meu pai, e não sei o motivo, quis me escutar. Desde cedo, menino
um pouco mimado e teimoso, havia em mim o deslumbramento em saber que ele me
ouvia. Ele escutou, me dava conselhos vagos e esperava. Porque esperava de mim
alguma coisa inédita e ao mesmo tempo tão própria dele mesmo: essa adesão à
vida, irrestrita e selvagem. Não sei se o decepciono – esse é o mito de todo
filho e não me faltam dias de filho pródigo, cheio de arrependimentos. E hoje,
quando vem não sei que virada na ordem das coisas, me dou conta do sentido
disso, quase sem querer, quase sem ter mais tempo.
***
Há anos viajei para uma cidade a dois pés daqui, em bancos
de couro e ônibus prateado e azul. Fui visitar uns parentes, mudar um pouco de
ares e me consolar, não sei bem do quê, tantos são os males que precisam de consolo
e remédio. Lá, a festa de sempre e daqueles três fins de semanas (mais ou
menos) guardo as melhores lembranças. Não se trata disso, porém. Lá, diante da
minha janela, do outro lado de um vale cortado por um rio tímido e canalizado,
havia um imenso retrato de mulher, o olhar duro para um lugar que eu não
alcançava nem alcançaria. Não sei que ilusão se fez em mim ao ver aquela mulher
enquadrada, um pouco a se deitar, as pernas longas, o olhar claro e duro. E se
olhasse pra mim? E se falasse comigo? A ilusão estava feita: não tanto pelo que
via mas pelo que pensava. Porque os pensamentos também podem ser encantatórios.
E olhando-a fui desfiando um rosários de
amores precários, de tentativas de amores, e falsos amores, todos alinhados
àquela imagem da era de reprodutibilidade técnica, perfeitamente reproduzida em
mil e um exemplares espalhados pelos mundo. Fatalizado por aquela imagem,
forjei meu mito de amor, adulando uma ilusão com as palavras mais bem
escolhidas. Estava lá supondo que a pura palavra amorosa traria à vida uma
imagem que me fosse redenção e nexo de tudo. Quando a gente perde a ilusão,
deve sepultar o coração. (Nem se deus mandar, nem mesmo assim). Desse episódio
quase nada ficou, salvo um poema perdido para o bem do autor. Ou ficou tudo: a sensação
que tudo pode ser mágico por dentro se é amado por fora.
Anos depois, por algumas vezes, passei por serras e retas, setecentos
quilómetros, mais o rodoanel e cheguei em Jundiaí. Há muito não havia outdoors
de modelo vendendo a última calça jeans do mundo. Havia ARL. E ARL abriu o
portão, me pegou pela mão, me abraçou. Não era mais as ruínas de um mito triste, era outro
mito pretérito acrescido do tempo presente, o mito de que haja o que houve eu
estou aqui. E nesse encontro vários tempos se ajustaram ou tentarem se ajustar,
mas já havia seguido a primeira lição, e de sonho a sonho, senti-me abraçado e
beijado por um sonho real. Havia a crença de que tudo se resolveria com a palavra certa, abracadabra. Há palavras que não fazem dormir, há palavras ditas que não deixam
dormir. Nem sempre toda a mágica das palavras funciona, mesmo em sonhos bem
sonhados. E o cristal pode quebrar e há situações que não cabem mais perdão.
Tudo isso somado, guardo em mim o que pode ser esquecido e não esqueço. O mito
não é o que acaba, o mito é o que recomeça.
E dou sete voltas no mundo, pela Viação Cometa, ônibus
vazio, estrada limpa e depois volto ao começo do começo do mito. Abro a caixa
do sonho e entro no sonho por inteiro, e o que passa, passa a toda velocidade.
Hoje há um sol lindo, e se todas as rodoviárias estão fechadas para mim, resigno
a mais sincera e profunda saudades dos ônibus da Viação Cometa.