quinta-feira, 22 de março de 2012

Memórias de um Pornógrafo

Toda ciência tem seu objeto, seus métodos e seus dogmas. A opção pelo inacabado e pelo precário, a opção pelo sugerido pode parecer indicar a não necessidade de um método e o desprezo pela ciência. As aparências enganam. A displicência, o improviso, o acaso podem ser outras tantas ciências cujos axiomas esperam, ocultos, por seu descobrimento.

O gesto – e o adiciono a um possível inventário – é a suprema ciência oculta da pornografia. Um levantar de dedos tem o poder de provocar inesperadas irrupções corpóreas, pode subjugar a mais irrepreensível vontade. O gesto pornográfico encerra todo um mistério.
A geometria em questão não exige, entretanto, tantos circunlóquios. Às vezes canso-me de mim mesmo (com freqüência), às vezes canso-me da pornografia. Ainda sim, a pouca ciência que professo tem seus objetos mais ou menos certos, talvez pouco acertados. Não unificados em seu próprio conceito de objeto, mas já apontando um caminho e uma direção. A pornografia é o exercício de uma ciência oculta, mas que não revela o sobrenatural, a antimatéria, o transcendente, o ectoplasma de vidas futuras e passadas. Revela antes os segredos da matéria, a transigência da matéria, o que mais secretamente impregna a matéria, o abscôndito do tato, o misterioso desejo das superfícies. A matéria é a nossa verdade mais familiar. Procurar corpos prontos, corpos postos, bem postos, acabados, compostos de corpos, corpos em festa: a pornografia é o itinerário abstrato de todos os corpos. (Desvendar um corpo é negar-lhe um rosto).

Saí de casa pornográfico, pleno de disposições insondáveis. Encontrei Ana Lúcia. O rosto muito bonito, mas não excepcional. Os cabelos um pouco curtos demais, mas compridos o suficiente para que um coque inesperado nasça misterioso da arte que apenas ela domina. O nariz ligeiramente aquilino, com uma curva de ângulo suave. Penso obsessivamente nela há uma semana – no modo como anda, no seu olhar, em como mexe os lábios para insinuar algum segredo de polichinelo –, há uma semana nada existe, apenas sua boca bem desenhada. Sinto os efeitos de uma força irresistível que me atrai para ela, na direção dela, para ouvir sua voz – é a tua presença. Nas próximas duas semanas nada vai acontecer. Mas imaginarei insistentemente em cada um destes dias o imponderável, aquilo que só o desejo entende. A cada dia e todo o dia cultivarei a imagem imprópria de uma aproximação, de um toque, de um beijo, de uma inesperada palavra. O seu sorriso freqüentemente contido por vezes escapa por entre os lábios, mas escapa contidamente, com uma discrição especial que revela ocultando. O olhar sombreado guarda uma promessa de luz que virá um dia (tenho certeza) inesperadamente. Em cada um destes dias a imaginação passará pelo cruel teste do presente, e eu sentindo-a logo ali, viva e tão viva, os lábios frescos, estarei pronto a aprender as duras lições da realidade e da imaginação. (Ana Lúcia, fala). A imaginação é o manual do pornógrafo – todos os segredos das mulheres estão em como elas dispõem de seus pés, quais sapatos escolhem, como cuidam desta toalete secreta. (Ana Lúcia, venha).

O avesso de mim mesmo persegue-me, e desejo, e sinto-me pilotando uma máquina de desejar, do lado de fora da cabine de comando, acompanhando os movimentos da parafernália que lhe dá direção apenas com uma leve intuição sobre o que virá. Como olhando os pés de Cláudia, as linhas que seguem do tornozelo até o calcanhar, a cor particular de sua pele, fina, tresmalhada, e de tal modo sentindo-me íntimo daquele específico pedaço dela que, naquele instante, quase senti seu cheiro, amplificado pela minha imaginação, como improvável memória de toda ela, de todos seus cheiros possíveis, como se meu único ofício fosse especializar-me nela. Um cheiro que fosse mais que uma marca, que fosse a tradução sensível e imediata de uma personalidade. Esta é Cláudia que desejo seguidamente todas as tardes. E não decifro. E não me canso de desejar. A intimidade é antipornográfica.

Talvez o que mais me aborreça e me disperse seja a multidão de impressões que me invade. Tantos corpos, passos, mãos, bocas, uma única idéia de desejo acomodada neste corpo de possibilidade limitadas. Não, também isso não me interessa: o que me interessa é a essência mesma da pornografia, mais que qualquer outro ímpeto ou impulso, é a coisa ela mesma que procuro, no olhar, no gesto, na feição pornográfica. A intimidade é o rosto. Eis o rosto, este rosto, que chora, ri, lamenta, se surpreende, resumo certeiro da intimidade: ultrapasso-o e encontro o anônimo olhar pornográfico como quem descobre uma jóia, e no beijo pornográfico, a vitória definitiva da carne. (Desvendar um corpo e negar-lhe um rosto).

A pornografia cura-me da falta que a realidade que me faz. Procuro a realidade em vários e tantos lugares – raramente a encontro. A realidade é uma obsessão pornográfica. Demoro-me na pornografia: lá tudo tem a obrigação da presença. Acordo pornográfico, bocejo pornográfico, escovo os dentes pornográfico, absorto em minha irrealidade, apenas resta-me o corpo. Aquele entre tantos outros desperta-me. Entre tantas imagens de corpos, partes de corpos, rostos disformes em transe anônimo, deveria eu fazer a fatídica pergunta sobre a pornografia: o que é? Qual sua natureza? Qual seu motivo profundo?
Antes de responder (se é que me cabe respostas) faço outra das perguntas essenciais da pornografia: qual a marca necessária do corpo pornográfico, quais os corpos usados e expostos estão livres da maldição pornográfica?

Quatro mulheres em um quarto branco, quatro corpos especialmente únicos, quase nus, ou já nus, cada corpo sendo único e sendo todos, explorado à exaustão, senhor e escravo de uma paixão pornográfica, desperta o seguinte (o pornógrafo vê, compara, deseja – o desejo se comunica por todos corpos como uma epidemia selvagem e incontrolável): pele, tez, coxas, rostos, os botões em flor dos peitos – quatro vezes quatro já são todas as mulheres do mundo. Eis as quatro graças, as quatro ninfas, as quatro nereidas, as quatro sabinas, as quatro medusas, as quatro aranhas, as quatro bundas, vezes dois, quatro cus que nos libertem dos pecados de Sodoma e Gomorra, quatro pares de mãos (quatro delícias vezes dois), quatro bocas. Eis que o quatro não é número cabalístico, é número pornográfico – devassidão, libertinagem, pornéia, pornófago, pornocracia, pornologia, as definições confundem-se como as partes de um corpo em plena atividade pornográfica – “meus irmãos não quereis ser pornográficos?” (E em cada praia tereis dois, três, quatro, sete corpos de Adalgisa, a lisa, a fria, a quente, a áspera Adalgisa, numerosa qual o amor).

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