sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Sonata para três cordas.

Sonata para três cordas.

As armas e os barões assinalados
Que, da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Tropabana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mas do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram
L.C.

Há dez meses volto a este texto e não o termino nem o descarto. Poderia também completar: nem o começo propriamente. Há uma única desculpa para ele, na forma de uma frase com a qual sonhei e pretendia semeá-la no meio de algum parágrafo, de modo a não dar muito na vista que tudo que o que escrevia devia estar na conta exclusiva dessa frase. Ocorre que a frase, de tão clara e nítida, ofusca e apaga todo o resto, me inibe e minha timidez dá as suas dez mil voltas e fico em permanente estado de rascunho.

Viajando a Porto Alegre com minha filha, veio-me não sei que frio na barriga, um susto morno: todo um mundo desconhecido se abriu para mim passando pelo km 210 da BR 101. É o que costumam chamar “sul do estado”, um sul ao sul do meu sul, e a vertigem me vem da arraigada crença da infância, segundo a qual o mundo terminara em Joinville – meu último e único sul, a máxima distância ao sul de mim mesmo. Em direção a Porto Alegre, o caminho por terra me traz assombros de navegador português. É meu périplo africano. (Adio meu objetivo final: a República Oriental do Uruguay). Explico-me. Todas as minha viagens a Porto Alegre feitas de avião roubaram-me a paisagem que, sem que soubesse, existia como a testemunha muda de uma outra viagem; se o avião economiza tempo, ele dispensa o olhar. Não há paisagem para o avião. Salvo uma ou outra aeromoça – em tempos de low cost –, tudo se ressume ao encosto da poltrona da frente, com o anúncio de mais uma novidade inútil e cara. De carro ou de ônibus, não se têm apenas todo o mistério da paisagem mas também o tempo da paisagem. A paisagem é uma forma de experimentar a permanência. Eu fiquei na paisagem. E me perdi. Como sou mais ou menos rigoroso como meus maus hábitos, resisto um pouco as aventuras e assim resisti a esta viagem, com todos os medos justificáveis de quem pensa com os preconceitos da infância. Mas no último verão, de tantas promessas não cumpridas, resolvi cumprir uma tentando me esquecer das outras, e estava um pouco decidido – o que, no meu caso, equivale a muita decisão – amparado em todas as razões fantásticas de um navegante português.
Talvez houvesse um império a conquistar, um outro continente, minhas índias ocidentais, ao sul do meu ocidente.
Passando assim, ao sul do sul, alguma coisa muda repentinamente: e como se refugiando e abrindo um espaço vazio de si mesmo, a Serra do Mar se ausenta, e o que era antes obstáculo e impedimento, escarpa e adversidade, se desfaz e surge a paisagem de horizontes e águas, planos de espelho e planícies úmidas de uma ausência marcante, lagunas, lagoas e areias e arroios e “é como se reparasse que de repente se abrisse um espaço entre o cais e navio e vem-me, não sei por quê, uma angústia recente, uma névoa de sentimentos de tristeza que brilha ao sol das minhas angústias reveladas, como a primeira janela onde a madrugada bate, e me envolve como uma recordação duma outra pessoa que fosse misteriosamente minha”. Outra viagem faço pela paisagem, descobrindo nela o que em mim não é mais serra ou montanha.
Mas não é tudo, e, diante de toda a nova paisagem, minha frase, sempre presente, escapa de mim mesmo, escorrega pelos meus dedos e se estica no horizonte daquelas planícies.
Faltava-me não sei o quê. Precisava ainda de outro modo e lugar para encontrar o tempo daquela frase e dizê-la com todas as letras. Nessas operações, nada é simples: jantando com um conhecido descubro algo que jamais vira: um amigo. Moramos na mesma casa por quase um ano, mas os morros das Perdizes, a cidade encravada em um sistema de vales tão imperfeito, com rios ocultos e mortos, fuligem e apresadores de índios. Tudo me fazia outro Alexandre, acidentado, pedregoso, difícil de alcançar. A cidade entrava pela casa e separava os tamoios dos tupys, nativos de estrangeiros e a cidade vivia sua mais agudo paroxismo: é uma máquina de separar. Morro acima, morro abaixo não encontrava meu lugar de pouso, nem cárcere, nem lar. E de repente, ao falar-me de seus planos, lá, no sul do sul, no fundo do Parque Farroupilha, fim de tarde com sol e risos, alguma coisa se rearranjou repentinamente. E podeira dizer, era outro Pacola, um Pacola trabalhado pelo tempo. E eis minha frase, dita assim, de modo abrupto e, mesmo impreciso, no condicional. E noto o quanto de ilusão ela guarda em si, e quão problemáticos são os enunciados fundamentais. Porque, normalmente, estamos enganados. Talvez não fosse outro Pacola, um outro Igara Pacola, talvez não fosse o tempo. E não era. Era eu. Não tanto o tempo que trabalhou em mim, idas e vindas formando entre planície e planalto um rusga de terra imperfeita e irregular, mas, sim, a paisagem, eu mesmo visto numa carta náutica, velha e amarelada encrustado em restinga que se perde e some no meio da baía. Precisei de outra geografia, e trabalhado por outra paisagem, recolhi das distâncias o que ainda falta e não encontro em meus meandros. Descobri, enfim, não sei o quê trabalhado pelo espaço, pela paisagem, pelas marés, pelo vento, transcrito em uma cartografia imprecisa e que me diz, de todos os caminhos, “vá ao sul”, “para o sul do mundo”. E encontrei um amigo com quem morei anomimamente como um estranho eu mesmo e durante o jantar refiz as medidas dos todos meus acidentes geográficos.


Par les beaux soirs d'été, j'irais dans les sentiers,
Picoté par les blés, fouler l'herbe menue:
rêveur, j'en sentirai la fraîcher à mês pieds:
Je laisserai le vent baigner ma tête nue...

Je ne parlerai pas, je ne penserai rien...
Mais un amour immense entrera dans mon âme:
Et j'irai loin, bien loin, comme un bohémien,
Par la Nature, - hereux comme avec une femme
A.R.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Digressão sentimental acerca da privatização do sistema Telebrás - homenagem ao retorno da Telebrás

Ora, afinal a vida é um bruto romance e nós vivemos folhetins sem o saber”.
Sweet home, Carlos Drummond de Andrade.

Em algum dia de 1998 o presidente da Bolsa de Valores de São Paulo batia pela última vez o martelo. A última empresa desmembrada do antigo sistema Telebrás acabara de ser vendida. Entre 1997 e 1998, privatizando empresas de energia elétrica e telecomunicações, foi embolsado pelo Tesouro Nacional quarenta e um bilhões de dólares. Quatro consórcios estrangeiros financiados pelo BNDES – “e não verás país nenhum” – arremataram mais esse espólio da herança getulista – “A eletrobrás foi obstaculizada até o desespero(...) Ao ódio respondo com o perdão” – e do nacional desenvolvimentismo. Encerrado mais esse assunto, mesmo para os jornais, alguém se perguntaria se o que sobra a ser dito não é simplesmente falta de algum assunto, tagarelice. Vamos com calma. Antes de ser privatizado, o sistema submeteu-se a uma drástica correção de tarifas que atacou o usuário por todos os lados: reajuste nominal de tarifas, redução do tempo para faturamento do pulso telefônico, reajuste brutal da assinatura básica da linha telefônica. Desse modo, que se fale menos e que se fale baixo, mais do que isso incomoda.
O fato é que dois meses após tal privatização meu telefone branco aderiu a um silencio constrangedor. Não vou entrar nos detalhes e revelar publicamente meu déficit doméstico e minhas dificuldades de solvência, que, sendo de ordem privada, e eu, pessoa física, a ninguém interessa, salvo às estatísticas de inadimplência. Vou apenas descrever essa situação tão sem sentido quanto trivial: em débito, acabo descredenciado pelo sistema, assim reza o contrato: para mim, entretanto, os desdobramentos tiveram um alcance que não entra em nenhuma estatística. E uma vez que não conheço nem o presidente, nem o leiloeiro, sequer o presidente do BNDES, certamente não esperaria deles um telefonema a explicar-me o aumento de mais de cem por cento na tarifa telefônica, preparando, evidentemente, a empresa para os novos tempos (e que tempo são esses?) e para os novos donos. Aliás, uma vez que o deputado eleito com meu voto é de oposição (por definição) nem com ele interessaria, a esses senhores, uma conversa. Entretanto, se contasse que esperei em vão um telefonema, bem sabedor de quanto isso era vão, o que só se explica por conta da cegueira do amor, um telefonema tão aguardado quanto fora a urgência do negócio – e exigisse certos direitos não prescritos na letra da lei – o espanto seria geral. Sem medo do ridículo sigo em frente. Por que, poderia se perguntar o telespectador do jornal da noite, tais direitos teriam cabimento?; ao que responderia juntando uma coisa com a outra, isto é, as vicissitudes de um amor mal amado e a contribuição tucana para o capitalismo brasileiro – não muito mais que uma gigantesca privatização de riqueza e recomposição patrimonial – : meu tempo é o presente. O amor é cego, mudo e, em grande medida, burro. Neste caso, não é mal informado.
Nunca sendo pessoal esse tipo de retaliação, afinal, que planejamento sobreviveria a condescendências dessa ordem, só me restara esperar pelo impossível, no amor e na política, o que, por definição, não acontece. Como a mocinha não me ligou, como fiquei duas semanas em débito com a prestadora de serviço, como não ouvi mais sua voz, calaram-se para mim todos os telefones. (Todas as mulheres resumidas nos esboços de uma única, que outro chamado poderia me interessar? – o amor é uma linha permanentemente ocupada). Há ainda outro agravante: se o início conturbado (início?) do serviço privatizado funcionasse apenas contra mim: encontrou (será) conversa melhor em linha cruzada ou depois de ligação completada veio fatídica mensagem (bem gravada): esqueça esse senhor, seguiu o conselho. Não sendo pontual com meus deveres de usuário – mas não apenas eu, também a prestadora do serviço – perdi a boa oportunidade que no amor é essencial e crucial e nunca mais me curei da dor que é ser mal amado, tão pouco amado segundo os critérios de meu imenso coração: a isso também chamam fortuna. E custa-me acreditar que a Embratel, com seu imbatível sorriso feminino, não saiba o que é sofrer de amor – quando se perde a ilusão deve-se sepultar o coração.
***
Em 1961 Brasília é inaugurada. Uma parcela dos cronistas de fim de tarde, hoje associados a filósofos, jurisconsultos, diplomatas e intelectuais engajados, versados em muitas e variadas ciências, insistem, entre outras coisas, em culpar a audácia da sua construção nossas mazelas pretéritas e futuras ao mesmo tempo em que consideram as mazelas presentes pequenos desvios naturais contra o que pouco se pode fazer, senão retomar um velho programa: esclarecimento e boa vontade. É de supor, afinal, que não somos tão somente infelizes mas também obscurantistas e teimosos – mais outro efeito colateral de nosso atraso material. (Que se diga, enfim, que marxistas somos todos, eles, nós e os outros). Do mesmo modo, um pequeno clube de senhores esclarecidos insiste em afirmar e reiterar o inevitável efeito inflacionário de nosso desenvolvimentismo tropical ao mesmo tempo em que desprezam a “megalomania” de uma capital-monumento: não são, entretanto, as piores tolices que essa terra já produziu, ainda que desde sempre tivéramos, mais que qualquer outro, a boa disposição ao esclarecimento e a tenacidade da razão prática, seu sucedâneo: “enquanto na metrópole um espesso véu vitoriano ainda recobria o interesse nu e cru do pagamento em dinheiro, numa longínqua sociedade colonial a exploração prosperava a céu aberto, direta e seca”. Assim, “marca, em quimbundo, se diz Karimu. Karimbo era o ferrete oficial de prata ou ferro esquentado na brasa com que se marcavam os negros no momento do embarque, no ato de cobrança dos direitos de exportação. Daí as palavras carimbo e carimbar. Dessa sorte, o substantivo e o verbo – só usados na língua portuguesa no Brasil – definindo as hierarquias, o escopo da propriedade, a validade dos documentos, a autoridade pública exercida pelo Império e pela República brasileira, derivam do gesto, do instrumento que imprimia chancela legal ao comércio de humanos. Da palavra que situa o momento preciso de reificação do africano”.
Brasília foi e passou, o Brasil seguiu em direção ao oeste (hoje Brasília é o maior marco da arquitetura moderna), numa época que crescíamos a taxas de dez por cento ao ano, em média. Chega de Saudades. Passam-se duas décadas e o rosto do brasileiro esmaeceu-se num espelho opaco.
E se tudo fora um sonho, um sonho imenso, no Cerrado, no Planalto Central, sonho de um monumento ritmado e de um rosto feito de colagens geométricas – bossa nova, arte de vanguarda, e de repente, inteligência; sonhávamos dormindo em quê berço esplêndido?

P.S. de 16 de novembro de 1999.
Os jornais avisam que uma parte significativa dos quarenta e um bilhões que o estado brasileiro arrecadou com as privatizações vai retornar ao bolso dos compradores sob a forma de redução no pagamento do Imposto de Renda.
Um exemplo talvez ilumine essa “modernidade”: vejamos a privatização das rodovias. A empresa que oferece o menor pedágio no leilão ganhava a concessão, tendo como contrapartida a obrigação de modernizar e manter a rodovia. Nada de novo. Eis, contudo, a originalidade: reparos e manutenção vêm sendo financiados com empréstimos do BNDES a juros subsidiados. O que seria uma atividade de risco (portanto, eventual fonte de lucro) se transforma em fonte de renda.
Compare-se isso com a máfia de fiscais em São Paulo. Vereadores malufistas cobravam ilegalmente dos camelôs uma propina para permitir a ocupação irregular de um espaço público: as calçadas. O que no caso das rodovias é legal e mediado, aqui é ilegal e imediato. Para um homem de visão, um leilão “público” resolveria tudo, já previsto naturalmente um empréstimo subsidiado para a construção de “barraquinhas”.
Em tempos como esse o amor é negócio de sociedades anônimas (Que amor resiste a um ataque especulativo?).

P.S. de 01 de janeiro de 2000.
“Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.
Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
Imensa e contraída como letra no muro
E só hoje presente”.

P.S. de 07 de fevereiro de 2006.
“É preciso que tudo isso seja belo. É preciso que súbito
Tenha-se a impressão de ver uma graça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora”.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Jean-Pierre Léaud: ator alucinado, por François Truffaut (trad. AOTC)


Há aqueles que amam a fantasia, há os que a detestam. Entre aqueles que detestam a fantasia, há os que fingem amar o cinema. Mas, se são questionados, você logo se dá conta que eles amam, sobretudo, o cinema documentário, aquele que é tão chato quanto as conferências dos exploradores na Sala Pleyel. Os que se afeiçoam ao documentário, se dignam, às vezes, ir ver ficção, mas logo se percebe que seu gosto os leva em direção as histórias realistas, bem situadas geograficamente, historicamente, sociologicamente. Como por acaso, essas histórias são frequentementes interpretadas por atores corpulentos, bem confiáveis já que seu peso os desculpa do que se poderia supor de leviano e ligeiro em atuar, segundo o espírito do público. Ninguém jamais critica esses atores pesados, sempre plausíveis como donos de bar, taxistas, funcionários públicos. Os fanáticos do verossímil concentram suas críticas nos atores magros, de bochechas vazias, descabelados, os atores bressonianos que sua timidez faz com que se exprimam como ventríloquos dolorosos. Contrariamente aos gordos bem situados, os atores magros não dissimulam seu medo nem um ligeiro tremor na voz, não são domadores, são indomáveis. Qual tentação se oferece, então, aos capachos que se tomam por leões de morder o calcanhar desses atores sonâmbulos!
Acabo de fazer o retrato de Jean-Pierre Léaud e de explicar por que ele não agrada a todo mundo e por que ele agrada tanto àqueles que ele agrada. Jean-Pierre Léaud é um ator anti-documentário, mesmo quando ele diz um simples 'bom dia', já mergulhamos na ficção, para não dizer na ficção científica. Antes da guerra, o público de quem a ouvido ainda não havia sido banalizado pela televisão, apreciava os atores especiais, de dicção marcante: adoravam o sotaque romeno de Popesco, os arrancos asmáticos de Louis Jouvet, a veemência alucinada de Robert Le Vigam.
Alucinado, a palavra é fraca. Jean-Pierre, filho natural de Goupi Tonkin, também secreta a plausabilidade e a verossimilhança, mas seu realismo é aquele dos sonhos.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Da arte de falar mal - o retorno

Da arte de falar mal.

Queridos amigos da Real Associação, na falta do que dizer, pensei imediatamente em exercitar meu pendor e minha vocação, tão óbvios para quem me conhece. Há trinta e tantos anos sou um convicto profissional do “do contra”. E isso explica tanta coisa em minha vida, que quase não dou conta de minha excentricidade. Por exemplo, o que explicaria morar em São Paulo, o mais completo e evidente fracasso sob qualquer e todo ponto de vista? E já respondo: em que lugar em me sentiria melhor senão no pior dos lugares para poder ser mais e sempre plenamente “do contra”? São Paulo é o lugar privilegiado da minha vocação. E já me vem a cabeça (saudades) meu querido amigo Menino do Rio. No Rio de Janeiro, quem não sucumbe a tentação de ser a favor? Claro que não a favor do César Maia, mas...Sei que alguns irão dizer, há favelas, tiroteios, a baia poluída, o diabo... Mas há também uma praia, protegida pela tal Guanabara, uma brisa, um calor, e de repente, uma abraço, um carinho... E eis que já estamos com um banquinho e um violão pensando, nada pode ser tão ruim assim... Exceto São Paulo. Daí que eu tenha pavores do Rio de Janeiro: tenho certeza que uma semana de Rio de Janeiro, se não me fizer carioca, no mínimo, subverte irremedialvemente minha natureza. E haverá, então, uma certo eu mesmo sorridente, queimado de sol, calção curto aberto no espaço, coração de eterno flerte.... Mas mesmo eu, com toda preocupação que me caracteriza, também tenho meus momentos de ser a favor. Veja vocês: comecei a frequentar a biblioteca da Faculdade de Arquitetura da USP em virtude de força maior (durante a última greve da Universidade, a biblioteca da FAU foi uma das poucas bibliotecas a furar a greve). E acabei me deixando contaminar pelo estados de coisas da FAU: meninas olhando livros de arte ligeiramente decotadas, gente estirada no gramado, namorando nos bancos do jardins... A FAU meus amigos é um baraaaaaato. Mas faço um parada. Não foi das meninas da FAU que pretendia falar. Já me explico: estava eu caminhando pelo Shopping Anália Franco (e não me perguntem como fui parar lá, nem eu sei responder) e vi uma família de corintianos: todos uniformizados. Um pai corintiano, uma mãe corintiana, e dois corintianinhos, um talvez com a idade de minha filha. E no meio do turbilhão de minhas obsessões ocorreu me certa repulsa por essa doutrinação dogmática das crianças. Poderia dizer: e se fossem uma família de malufistas: Todos com a camiseta 1111 do Dr. Paulo? As crianças já transformadas pelo constrangimento irresistível dos pais em pequenos taxistas? Poderiam dizer: ser malufista é diferente de ser corintiano, santista, são paulino. Verdade. Mas ainda sim permaneceu em mim a repulsa. Talvez porque eu queira me libertar um pouco das minhas obsessões, talvez porque ache toda obsessão uma sujeição injustificada. Faço outra pausa (para me contradizer): dias desses fui fazer antropologia em Higienópolis: e cheguei no horário propício. Era o exato momento em que as senhoras negras passeavam com os filhos da gente bem estabelecida de Higienópolis. Lia, alguns dias antes, que há um movimento no bairro contra uma estação de metrô na Av. Angélica. Porque essa gente decente não se incomoda muito se a senhora negra que cuida de seus filhos (e já lhes ensina a educação do mando se portando como serviçais por força de ofício) passa 5 horas por dia no transporte público. Quando essas considerações me vêem, só penso em uma coisa: eu preciso ser contra, tenho que ser do contra.
Fecho parênteses: tanto blá blá blá por quê? Queria falar do futebol nosso de cada dia, mas fugiu-me o assunto: sobre o Internacional, com seu simpático bi-campeonato, lá estava o Pelé de vermelho e sua tradicional camisa de gola chinesa, quase tudo já foi bem dito pelo meu irmão. Sobre o Ganso, trágica lesão, além da tristeza de torcedor e minha solidariedade, também quase tudo já foi dito. Sobre o Neymar, vá lá, ficou, mas o Neymar tem o mal hábito de ser um cretino, e não tenho muito o que falar dele.
Mas sucede que no fim de semana li uma longa entrevista com o Murici Ramalho, na Folha. Notável. Sóbrio. Honesto. O sujeito só cresce. Conclui com o lapidar “futebol é uma ilusão”. Tremendo. Mas o trecho que mais me chama atenção, sem qualquer laivo de moralismo, sem qualquer destaque desmesurado foi quando ele fala da esposa: “Converso com a mesma mulher há trinta anos, e para mim é uma maravilha”. Justamente: conversar com alguém. O maior dos mistérios humanos, a mulher, resolvido na singeleza dessa verdade. Imagino o quanto Muricy tem a me ensinar, eu que já não pretendo ser jogador de futebol. Não sou fiador do Murici, não sei de quantas orgias ele já participou, mas a frase, a confissão, é de uma beleza modesta e cativante. Não há escândalo, não há propaganda. Só um homem falando. Sou santista, devoto de São Rei Pelé, por obrigação e hábito, mas torço sinceramente por esse homem notável, que melhor que treinar o Fluminense e caminhar para a conquista do Brasileirão, senta para conversar com a mesma mulher há trinta anos e garante: “para mim é sempre uma novidade”. De repente, uma flor nasceu. Nense, Nense, Nense.

Da arte de falar mal ou da serventia das idéias fixas

Da arte de falar mal
(ou da serventia das idéias fixas).

As mães pouco sabem dos filhos, salvo que são seus filhos. Desnecessário dizer que os filhos sabem quase nada. Este dado fundamental deve ser tenazmente preservado. Se mães e filhos se perdem dificilmente se encontram. O laço mágico raramente suporta os atos da deliberação humana. As mães não querem, porém, outra coisa senão seus filhos: e se a vida lhes oferece outras vocações e ocupações – criminosos, mentirosos, contrabandistas, estelionatários, assassinos confessos, adúlteros ou pecadores de baixo impacto –, se há ainda mães neste mundo, eles serão apenas filhos, os filhos seus (sem as penas previstas nos códigos penais e morais). A força desse laço vem daí: a ignorância de tudo os liga absolutamente. O amor de mãe é superficial por profundidade – não é nem mais nem menos verdadeiro, é de outra espécie.
A mãe é a suprema fiadora de todos nossos pecados. Mesmo se todos fôssemos terrivelmente maus. (Por mais terríveis que possamos ser, há o último recurso da mãe).
Às sextas-feiras tenho almoços religiosos com minha mãe. Tratamos de quase nada de importante e apenas reiteramos a formalidade mágica de sermos mãe e filho. Assim, todas as críticas que me faz minha mãe nesses sagrados almoços de sextas-feiras não são senão diversões circulando o nosso fato fundamental. E os entendo desta maneira: também tenho meus momentos de profundidade superficial.
Lembro-me disso a propósito de um de seus comentários sobre os meus maus hábitos (que não são poucos). Ela não se furtou em me chamar num canto e disparar verdades sobre minha pobre e triste vida. Todas verdades verdadeiras, se o mundo fosse mundo. Mas não é (e deveria ser?). E eu, que não resisto às verdades, entrego-me sem mais à facilidade das mentiras.
Foi em um desses almoços, estando eu já preste a desfiar o rosário da maledicência, bem disposto a enumerar as contas do mal falar em que me especializo (extensão mais ou menos geral de uma mal amar constante e apaixonado, eu que amo mal e erradamente), preparando-me já para outro ritual incorporado à minha vida, que me ocorreu, imprevista, a verdade deste impulso atávico: falar mal, de tudo e de todos, um artesanato fino e sofisticado, uma nobre arte. Assim, foi se criando meu bestiário pessoal, composto de fatos, pessoas, situações e ressentimentos triviais, que periodicamente exorcizo com palavras mágicas e, sob a fumaça intensa da maledicência, num repetido ritual em que procuro me libertar do inútil peso de minha modesta humanidade. A arte deve ser um exercício que se repete sempre com o sentido renovado.
Revelo pois um segredo, não dos mais secretos, eu que sou um péssimo guardador de segredos. Às sextas-feiras reúne-se a sociedade secreta dos maledicentes. Acredite-se, trata-se de uma sociedade de alcance mundial. A reunião é em local público. Como saber o motivo íntimo e insondável que reúne seus membros em torno de uma mesa para conscienciosamente, de maneira aplicada, desacreditar esse mundo? Como encontrar o nexo secreto disso tudo, a verdade desse encontro marcado quase que pela infâmia e pelo opróbrio? Todo o segredo está no que não se vê. (Não é esta a própria definição de segredo?) Não ser feliz tudo explica.
Há, entretanto, muita confusão nestas confissões súbitas. Eu que sou confuso e afeito a confissões súbitas, redobro o problema. Em minha defesa em face dos bons costumes, reitero: não sou fofoqueiro (palavra, aliás, antipática). A fofoca tem uma pretensão completamente estranha à maledicência (e às minhas próprias pretensões). A fofoca pretende ser a revelação crucial de uma verdade oculta e inconfessável. Há ainda outro elemento na fofoca. O fofoqueiro não pretende ser fofoqueiro, pretende esconder-se e proteger-se atrás de uma verdade oculta e alheia. O cotidiano pecado mortal (sobretudo se for de parente ou de vizinho) é o último bastião do velhaco. Vejam, o velhaco pretende ser ungido em praça pública por obra e graça de uma verdade que não lhe pertence. Uma vez a verdade posta, para o bem e para o mal de suas vítimas, no cúmulo de sua modéstia orgulhosa, o velhaco, que pretende ser reconhecido como veículo inevitável da verdade, conclui as artes de seu ofício com o célebre “eu te disse”. Depois, sai de cena e volta ao seu cotidiano de guarda-costas do pecado alheio. A fofoca reporta-se à teoria da verdade como adequação: o revelado deve corresponder a um fato inegável, porém, oculto. Nada mais dessemelhante à maledicência.
A maledicência é heróica e não raras vezes solitária. A maledicência é um anticinismo íntimo e militante.
Não nego, nem reafirmo verdades (preocupação que abandonei recentemente). Nem está entre minhas obsessões a investigação dos defeitos alheios, e mesmo dos pecados alheios. No meu livro de Salmos o pecado alheio perdeu importância. Os defeitos alheios são também apenas isso, defeitos dos outros. Não sou portador nem de uma ciência nem de uma moral. O outro não me interessa em sua originalidade, profundidade, genialidade. Já quase não me interesso por mim, o interesse pelo outro minha preguiça desarma. O que me interessa é apenas este objeto gratuito, quase sem substância, que a vaga noção de humanidade me oferece e obriga-me: este mau humor de funcionário público, este ônibus atrasado, a falta de troco, a calçada esburacada e o preço do pão.
Se a tudo devotasse apenas o interesse prático de fofoqueiro, de diretor de almas, dos pregadores de verdade, se aos objetos de predileção universal devotasse o olhar compromissado daqueles com profissão, não teria nem o physique du rôle nem a vocação necessária à distinta arte. Também fui educado pela contemplação, forma superior de preguiça, que me ensinou a pensar (e só pensar) no que está fora do alcance das mãos. Como um corolário infeliz, habituou-me a desejar todas as mulheres impossíveis – e depois de pensar, desistir – o que, aliás, não contribui muito para minha carreira de Dom Juan transcendental. A preguiça, forma elementar de se pensar com o corpo, também produz flores raras. Em um mundo em que o trabalho – principalmente se for apropriado do outro – tornou-se verdade absoluta, à preguiça cabe uma dura tarefa crítica. Mas onde está o mundo? O mundo só se permite oferecer o que está ao alcance da mão de cada um, por isso é muito pouco e muito pequeno. Ainda que seja pouco o que venha eu a ter, muito mais tenho com a nobre arte. (O descrédito com a humanidade é a esperança que me cabe de, um dia, todos desacreditados, sejamos fiéis depositários de nossa falta de valor).
Como já dissera, as confissões súbitas, por vezes, assaltam a calma inofensiva da minha alma. Enfrento dilemas espirituais e me aborreço demais. Adoto as partes irreais das coisas reais, tiro de mim as partes mais irreais das coisas reais, sou um militante do absurdo. O aborrecimento é a forma de desejo imediato por fantasias. E me aborreço demais. Principalmente com quase todos os da minha espécie. Há, porém, meus queridos amigos, com quem divido meus vários pecados e minhas confissões atrasadas. E revelo parte dessas confissões. Sou tremendamente invejoso, a tal ponto que invejo da criança o pirulito que não tive. Minha inveja é a forma patológica que a pequenez do mundo assume em mim. Toda noite sonho com uma coleção de guloseimas imaginárias. Pela manhã acordo com uma inveja gulosa e redobrada. Mas é a inveja dos desocupados que mais me assola. O tempo livre é um luxo dos proprietários.
E é a inveja dos desocupados que me provoca, por vezes, a piedade súbita da humanidade (como é comum nesses casos, também uma autopiedade irresistível). Pensar na humanidade, que ela exista ou deva existir, é desfrutar também do luxo da ociosidade. No emaranhado de um desses meus típicos dilemas espirituais, deparei-me com a seguinte dúvida: a maledicência das sextas-feiras, fim de tarde, celebrada com uns poucos e essenciais amigos, melhora-me, oferece-me afinal uma insuspeitada sabedoria? A palavra “humanidade” ainda é tão poderosa que sua simples menção já me leva às cercanias da “sabedoria”. Mas não se trata disso. Não é a maledicência que enche o coração dos infelizes de sabedoria: é a irrelevância da maledicência que nos tranqüiliza. Talvez a maledicência seja um disfarce a nossa própria irrelevância, e nesse caso, uma forma superior de consciência. Pois note: não são vitoriosos sempre os mais ponderados, sempre os mais calmos, sempre os mais razoáveis, sempre os justos adeptos dos bons costumes? No exercício da maledicência compartilho a fidalguia dos que têm o direito de mando: aos invejosos, aos corintianos, aos perdedores, aos rebaixados, aos excluídos, respondo com a máxima que enverniza a botina dos poderosos: só o amor constrói, sabendo, entretanto, a mentira que essa verdade esconde – só o poder constrói porque só o poder destrói. A sabedoria do vitorioso é ter a certeza da última e da única palavra – no nosso modesto mundo esta parece ser a única sabedoria possível. Somos apenas expectadores inexperientes.
Mas não nos desesperemos. Ainda haverá o que fazer. Mesmo que não chegue o dia em que a humanidade seja moeda sem mais valor de troca, talvez chegue o dia em que nós estejamos libertos da arte de falar mal. Nada mais nos unirá, nada nos separará, e na escuridão do abismo sentiremos o conforto da indiferença absoluta e essencial. Adquiro agora ares de profeta filósofo. Não há patologia que não mereça seus cuidados. As contas feitas, somos uma coleção mais ou menos uniforme de manias, e me desculpo pelas minhas.
A operação de crédito é o segredo da humanidade e da maledicência: com crédito gastamos o que não temos, com a maledicência hipotecamos uma humanidade que já não há. Semelhança hipotecada por algum Banco de Crédito e Comércio. Nesta vida mesmo pelo que não se faz, se paga.
Insisto, poderia ainda discorrer sobre as implicações morais da arte: a nobre arte, esta distinta arte é uma disposição moral em relação ao mundo: a única verdade que lhe concerne é o imperativo que a constitui. Não importa o que se diz, seja verdade, seja outra coisa, apenas importa como isso deve ser dito: esse mal falar dos outros deve ser uma nobre e distinta arte, ainda que condenada à irrelevância da arte, extensão menos complexa da irrelevância deste nosso mundo. O compromisso da arte com o mundo é descompromissado, como a beleza nada tem a ver com a alma que lhe corresponde: a beleza e a arte são gratuitas e ociosas. Diria mais, com um acento maledicente: a beleza e a arte são tremendamente preguiçosas. A tradução popular desta cláusula estética já recebeu sua versão de almanaque de fortificante: as mais bonitas são as mais ordinárias. Mas note: isso não as faz menos desejadas. Talvez tudo isso ainda não seja o suficiente para definir a maledicência, seus porquês, sua necessidade vital para os mais entre os mais aborrecidos da espécie, nem para definir os meus aborrecidos arroubos de mim mesmo, meu amor inquebrantável aos amigos, às mulheres imaginárias, às impossíveis, e às irreais, a pouca coragem insistente que exercito em nome de minhas preferências, aos sonhos que nos dispensam de viver, ao crédito barato e a tudo que nos ajuda a expiar nossas culpas por todos os crimes de fantasia cometidos. Mas veja: como se tivesse matado um homem e ainda me considerasse uma pessoa honrada e andasse por aí como um anjo pálido, assim a arte me ensina a não viver a não vida que nos resta.
Na falta do que fazer, na falta do que ser, na falta de onde estar, há o último recurso dessa reação imaginária, irrestrita, impertinente. Falar mal de tudo e de todos, falar mal dos outros até que o mundo se refaça. Oh humanos libertem para sempre minha alma bovina, deixem-me ruminar minha pouca verdade: estou desarmado, mas não vencido; confesso, não aceito desculpas.

sábado, 17 de julho de 2010

O Profeta do acontecido II etc


O Profeta do acontecido II, Brasil X Holanda e outras quejandas misérias.

São tantos os acontecimentos que se é levando por um turbilhão de associações, de possibilidades, de imagens e quase imagens: é o mundo, somos nós, são os outros e fica realmente difícil recompor-se em um idéia estável e confiável das coisas, do mundo, de nós e dos outros. Ontem (ou já será anteontem ou ainda mais distante, quando éramos todos jovens?) a roda da fortuna girou duas vezes e duas vezes duas vezes: e quem sabe o primeiro tempo de um jogo de futebol não seja um outro tempo que se junto a um segundo outro tempo e entre a saída e a volta ao campo haja mais mistérios que supõe nossas vãs previsões – a descontinuidade, neste caso, seria o segredo da invenção de todo o tempo do esporte. Um dos mistérios do futebol? Vá lá... Tudo metafísico demais, concordo. E a metafísica nada mais é do que um certo mal humor, um despertar indisposto, uma noite mal dormida, um telefonema infeliz. Mas vá lá... Não preciso de tantas divagações, nem pretendo ir tão longe assim no céu das minhas miúdas idéias. Recomeço lembrando os vaticínios do Menino do Rio, sobre o destino do Uruguay. E o faço não para requentar o óbvio – como é difícil ser profeta do que ainda não aconteceu, e não apenas do que ainda não aconteceu mas do improvável, do impossível, do imponderável. O profeta é sempre burro meus amigos: ele não precisa, não pode, não deve entender de suas profecias. Ele apenas acredita piamente. E começo pelo fim, sem entender o porquê. Não pretendia começar pelo Uruguay das quartas de final. Já tivemos o Uruguay da semifinal, igualmente surpreendente. Para tentar acompanhar a roda do fado girar pensei no fatídico Brasil X Holanda (sei sei assunto já requentadíssimo, obscuro e longínquo depois do caso Bruno e seus amigos de fina estampa...). Mas pode-se perguntar por que fatídico, que destino, que fado e mesmo como destino, como fado, etc, etc, etc. Acordei cedo, no dia do jogo, para resolver pendências que me atormentam, mas nada que escapasse do trivial: dívidas, credores, e meu notório nome sujo, e tantas outras questões paralelas. E já percebia e mais, antevia a cidade a se preparar para um desastre, mas um desastre morno, sem muito graves consequências. E digo isso porque acordei com a certeza serena de que o Brasil seria derrotado. Minto. Já dormi certo da derrota. E poderia muito bem parecer que a derrota por todos os lados me contamina de certa disposição... derrotista. Nada disso. As derrotas que coleciono têm o mau hábito de ser estritamente pessoais e quase incomunicáveis. De modo que fui surpreendido mais uma vez pela certeza de profeta. E repito: o profeta é burro. E perdendo tempo de muitas maneiras (já que dinheiro não tenho mais para perder) diante da tela do computador via o primeiro gol do Brasil levemente surpreso, nem desconfiado, nem entusiasmado, continuava as voltas com os meus assuntos triviais. A profecia amigos é uma maldição que me persegue há 38 anos e eu resisto como posso. Daí que diante do gol do Brasil mantive-me calmo, esperando aquilo que faz indiferentemente falsos e verdadeiros profestas: aguardei o fato, a coisa ela mesma. Ganharíamos e poderia dar-me por um satisfeito pseudo profeta, um falso profeta a bradar por ondas eletrônicas a salvação que, sinto muito, não virá. Não é uma profecia, é apenas um modesto palpite. Tão diferente das, então, pretensões do meu queridíssimo amigo Menino do Rio, que consultou sabe-se lá qual oráculo (talvez o único e verdadeiro livro de São Cipriano) e que exorbitava uma certeza no nosso saudoso Bolão RNR que assustou uns e outros. Mas como vimos, e eu lamento, era mais uma certeza de cavalo paraguaio.
Voltando ao jogo, todos sabemos que foi o que ocorreu. Repentinamente uma tempestade se abateu sob o céu imenso e estrelado do escrete nacional. E fomos fatalmente derrotados, como que atônitos e incapazes de reagir. Nossos jogadores também tiveram seu segundo tempo de profetas, e hoje creio mais que nunca nessa verdade: eles sentiram que magicamente, que de modo irresistivelmente mágico não podiam ganhar e, infalivelmente, perderam. Quando saí de casa, diante de um Vale do Anhagabaú desolado, vi uma revolta bovina se espalhar, como uma onda em dia de ressaca, pelo castigado Distrito da Sé: havia uma morna insatisfação, uma revolta muda a somar-se a um resto de uma sexta-feira inútil para viver. Os mais exaltadas, e sempre há, procuravam motivos para um crime, um linchamento talvez. Por fim, nada houve. E todos voltaram cabisbaixos para casa ou sabe-se lá para onde. E fiquei com minha incomunicável certeza: quem de vocês, amigos de boa fé, acreditariam em um profeta do acontecido? E busquei no fundo da memória algum segredo para revelar e que pudesse contar como quase prova, uma verdade verdadeira a atesta esta verdade de última hora: e vem não sei que confusão em uma casa da rua Conselheiro Antonio Prado, conversas e gente passado de um lado para o outro. De repente todos olhando uma fantástica luz colorida e entre azuis e laranjas eu, ali, envolto na minha fantástica fantasia de criança de dois anos. A realidade da infância é toda uma literatura fantástica. E via, enredado na própria fantasia da minha realidade, que tudo tem um sentido, tudo há de ter um sentido, e minha mãe, só as mães, a pedra angular da realidade infantil, me chama e me pede para prestar atenção ao jogo: sossega menino. E no meio disso tudo algo como o Brasil é desclassificado pela Holanda em minha primeira copa do Mundo, em 1974. Aos dois anos de idade, diante da Laranja Mecânica, via a realidade triunfar sobre a fantasia de um país embalado pelo começo do fim do nosso Milagre Econômico, naquela primeiro ano do Governo Geisel, com os passes e o gol de Cruyff. Em 1974, aos 2 anos de idade, a irrealidade da derrota irrompe em minha fantástica esperança de criança. Não esperava que o Brasil enfim fosse a potência que se prometia, esperava apenas a alegria ao invés da tristeza da derrota, apesar de ainda não saber o sentido da derrota. Em 2010, vejo com os olhos líquidos e amendoados de minha filha de dois anos o mesmo infortúnio e a mesma verdade. Uma derrota para a Holanda. E compreendendo muito menos. Da vida, do futebol e do mundo.

P.S. Fim da Copa do Mundo (qual novidade) sob os auspícios do inusitado. Sem nenhuma simpatia pelo campeão, minha copa se encerra na disputa pelo terceiro lugar. (Por isso eu sempre sou: terceiro, como ensina a canção.) Fica ainda não sei que verdade: Renato Negueti Rocha, artillheiro de um único campeonato.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Mudamos nós ou mudou o natal?

Leio a mensagem (Torcer or not to be) no inusitado blogue Bolão Renato Negreti Rocha. O blogue, por si só, mereceria uma mensagem. Ele nos põe em um outro patamar (nós, sobreviventes do Nelson Xavier e Anselmo Vasconcelos), altíssimo patamar, é certo. De tal modo Dom Tadeu mostra sua dedicação que já penso se ele não merecia um premiação à parte no fim do certame, algo como a faixa Miss Simpatia que cabe aos não ganhadores ou aos concorrentes honorários, ainda que ele seja também, daí a graça, um profissional da chatice.
Volto ao assunto: mudamos nós ou mudou o Natal? E poderia muito bem reduzir isso a sensação de todos nós (uns mais outros menos) de que mudamos, que o mundo muda, que a roda do fado não pára de girar. Hoje, porém, vivi a inusitada verdade de um anti-torcedor, de um contra-torceder, de, pior, de um ex torcedor da amarelinha, que sabia de cor a “Seleção Canarinho” do saudoso Júnior Capacete, que parece seguir com suas pretensões musicais, e pulou e gritou da mais pura alegria com o famoso (o primeiro) e nunca igualado gol do Josimar, na copa de 86. Eu era um outro que já não sei quem fui, apenas que teve 14 anos. Hoje, aos 37 anos, acordei sem a menor impressão que teria de mudar meus planos de trabalho por causa de um jogo do selecionado brasileiro e que, no máximo, daria uma espiada no correr do jogo em alguma televisão que haveria de estar por perto.
Caminhando pela Paulista pelas 10h30 desta manhã fui surpreendido por não sei que ar nervoso a envolver tudo e todos, menos eu, preocupado eu com alguma coisa que preocupa a maioria dos mortais (falta de dinheiro, chegar no horário, tomar o horrível transporte público, comer alguma coisa) seguia meu caminho por essas plagas sem dar maior atenção. Havia uma correia maior que o normal, um entusiasmo nervoso a envolver os rostos e a apressar os passos e eu, fora de lugar, mais uma vez, custei a pensar que tudo isso era efeito de um muito pouco interessante jogo de futebol. E confesso, me surpreendi. Talvez menos com o frenesi a tomar conta de todos e mais com minha calma indiferença. Já no Distrito da Sé, no centro de Piratininga, o frenesi transformou-se em algo como um convescote carnavalesco, de uma permissividade semi selvagem. E vi pessoas que não param no sinal vermelho, que são a favor da pena de morte, que não se furtam a buzinar para velhinha na faixa de pedestre, com os rostos pintados, perucas verde-amarelas, antenas de joaninha (amarelas, naturalmente), um mar de camisetas amarelas, e com as cornetas variáveis na forma e na extensão, menos na inconveniência, a gritar, a correr apressadas, a ameaçarem a mulher do próximo. A sensação era que alguém estava prestes a passar a mão na minha bunda e que todas as bundas corriam um risco relativo, homens, mulheres, velhos e crianças. Mas essa permissividade generalizada não era inconformismo. Havia , afinal, uma multidão. Mas todos eram conformados torcedores da Seleção Brasileira. Talvez o único inconformado na multidão fosse eu. Sou um poço de inconformismos bem acomodados.
E já me explico novamente (tantas explicações): gosto de futebol. Assisti às semifinais e finais do Campeonato Paulista no Charm da Augusta e talvez nunca tenha torcido tanto. Se o problema parece não ser o futebol, quando se trata da seleção nacional, tudo o que é irrelevante para o nosso time, torna-se intolerável – técnico bandido, jogador evangélico, má contratação, desvio de dinheiro e mesmo ingresso caro.
Há, porém, não sei que incapacidade de sentir-me parte desse simulacro de unidade chamado Selecionado Nacional, de sentir-me brasileiro (não porque tenha conseguido um passaporte italiano, casado com uma alemã ou ganhado o green card na loteira americanda), que hoje me assombrou diante da multidão no Vale do Anhagabaú. Que lugar é este? Já não acredito que um lugar entre tantos possíveis seja capaz de dizer quem eu sou ou como devo ser; não acredito que um lugar seja capaz de dizer o que é aos que passam por ele: tanto o lugar quanto nós somos só outros tantos fantasmas, sombras penadas. Acho que formou-se em mim uma radical vontade de não participação: porque toda participação é irrelevante, porque o Brasil é a prova cabal de que nada vai dar certo.
Diferente dos grandes heróis de meu remoto passado de torcedor da seleção – Paulo Roberto Falcão, Sócrates, Zico, Edinho, Leandro, mesmo Carecone, em 1986 – vem agora, diante da minha imagem de ex torcedor , a sombra de um único herói menor: Josimar Higino Pereira. Homem de dois gols,contra Irlanda e Polônia, duas assinaturas na televisão, a narração única de Osmar Santos: gol de Josimar. E na sua comemoração, no entusiasmo louco de sua comemoração, já havia o prenúncio de que sua vida, toda ela, caberia nessa poucas lembranças a inundar irremediavelmente todos o resto de vazio a ser preenchido. Gol do Brasil.

sábado, 12 de junho de 2010

O Profeta do acontecido (agora lembrando de Corinthians 4 X 2 Santos, maio de 2010, volto a 2008).

Caríssimos, tenho uma vertigem pelo óbvio e não há assunto martelado, visto e revisto, que não deixe de chamar minha atenção. Sou absolutamente previsível. Daí poderia justificar o assunto desse meu retorno ao Macaco evocando as idiossincrasias de cada um a cada dia (nesse caso específico, as minhas, desta semana). Mas, caso fizesse isso, não diria a verdade. Mesmo que a verdade não seja tão importante assim, insisto nela porque a que estou prestes a revelar justamente não parece verdadeira (é mais uma dessas verdades inverossímeis): escrevo sobre o rebaixamento do Corinthians, e não porque este é o assunto do dia. Difícil de acreditar, reconheço. Afinal, por que se falaria disto senão porque não se pára de falar disso? Como não ver nisso o desprezo, e diria, o despeito típico do secador vocacional, que todos guardamos dentro de nós? Não, senhores, mesmo com todos esses senãos, não é o óbvio que me obriga a falar do Corinthians. A verdade me veio com os fumos de profeta, porque tive uma súbita visão indiferente sábado pela manhã, e é enfim disso que falo: o “inevitavelmente o Corinthians cairia” calou em mim qualquer forma de juízo ou consideração. Apenas apareceu simplesmente verdadeiro e incontornável. Advirto: não sou corintiano, e (de novo, difícil reconhecer) não me importava mais o destino do corintianos. Justamente por isso fui assolado pela verdade e clarividência injustificada da profecia. Acordei, e pela manhã de sábado, um nova certeza invadira minha vida. A marca mais certa dessa profecia, entretanto, não vem tanto da certeza de que fui veículo, mas principalmente de meu desinteresse pelo assunto. Domingo pude assistir ao jogo acompanhando quase indiferente o desespero e o desabafo da torcida corintiana, e não porque seja insensível ao sofrimento do outro, mas simplesmente porque o sabia inevitável.
Não sou, entretanto, sempre profeta.
Dormindo havia três noites em uma casa em ruínas em meio a uma outra série de ruínas (os restos inaproveitáveis dos outros) sequer lembrava do dia de Juízo Final que os corintianos enfrentariam no Domingo, dia do Senhor, e se afinal se safariam ou não da espada do Vingador.
Explico-me: mudando-me em uma debandada coletiva da Apinajés, sob os solavancos do improviso e do desencontro, cada dia meu desta última semana assumira o ar de um épico: livros, cama, mesa, abajur, confissões atrasadas cada coisa com um destino diferente adiava meu próprio destino, e foi quando me vi dormindo sozinho em um colchão, em uma casa pronta para ser mal assombrada, por outros que não os já quase antigos moradores. Alheio a tudo, eu mal conseguia coordenar meu próximo destino, melhor, minha próxima parada. E só agora percebo o motivo (e não a explicação) profundo de minha profecia. Houve nisso tudo uma inesperada comunhão. A minha mudança foi completamente corintiana, o processo de mudança foi uma longa campanha corintiana, meu último sábado na Apinajés foi um último domingo corintiano: tive, sem me dar conta, a suprema experiência corintiana, por antecipação.
E no sábado, que para mim já era domingo, vivi a certeza serena da derrota.

A voz do maior do mundo

Diz a voz do povo que tudo é relativo. E para aqueles que são objetos de toda forma de violência disponível, convenhamos, o relativo faz muito sentido. Mas ainda há diferenças fundamentais no mundo. Para me fazer entender uso um exemplo trivial e familiar. Vejamos um dos significados de “piada”: história curta de final surpreendente, às vezes picante ou obscena, contada para provocar risos
Ex.: contou uma p. grosseira sobre um macaco lascivo

Ora, quem diz o que é picante ou obsceno? Já me vem à memória meu querido primo Tião, exatamente o maior corintiano do mundo. De todo seu imenso repertório de piadas, se contasse todas, digamos, na mesa do Bar do Soni na Afonso Bovero, talvez lembraríamos de um ou duas piadas marcantes (escrevo marcante, não picante). Mas ele tinha o saudável hábito de contá-las no almoço de família. Reproduzo apenas uma palavra de uma famosa piada sua: “manipular”. Manipular no Bar do Soni é quase uma palavra trivial, em um almoço de família, o obsceno gesto de um macaco lascivo. Resumo: tudo é relativo, mas às vezes o lugar em que se diz as coisas faz alguma diferença.
Chego finalmente aonde queria: há algumas colunas atrás revelava uma verdade: Ronaldinho Gaúcho era apenas um susto mal compreendido (pela legião de puxa-sacos que o cerca), um novo Zico, sem a aura da torcida rubro-negra. Vi-me envolvido em uma cruenta polêmica, e repito, não sou homem de polêmicas.
No último jogo pela seleção, O Maior do Mundo falou: PIPOQUEIRO (no maior do mundo só se fala em caixa alta). Repito PIPOQUEIRO. Falou, está falado.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Da arte de falar mal

Il Faut Jouer La Comédie

JOGO DE CENA é uma locução consagrada em língua portuguesa e de uso corrente. É possível dizer que seu uso extrapola o traço técnico que a melhor caracteriza. Deste modo, posso dizer que “isso ou aquilo é jogo de cena”, sem estar preocupado com uma estréia qualquer, sem ser diretor ou ator, sem gostar, entender ou me preocupar com o que vem a ser teatro. Posso afirma isso simplesmente com a intenção de pôr em dúvida a verdade de uma situação (principalmente), o que significa que nesse caso “representação” é o oposto do verdadeiro. Curiosamente, a verdade do teatro é justamente essa: não ser “verdadeiro”, mas “teatral”. Reproduzo aqui a definição do dicionário, que indica a marca técnica da expressão:

1conjunto de movimentos (deslocamentos em cena, gestos, esgares fisionômicos) executados por um ator ao representar um dado papel
2conjugação dos efeitos obtidos por um diretor numa peça, como a marcação do elenco, a composição cromática dos figurinos, os cenários, a iluminação etc.

Neste caso, “jogo de cena” também pode ser entendido como as marcas estudadas e construídas para produzir o efeito propriamente teatral. Aparentemente, ninguém vai ao teatro para ver “a” realidade, o que não significa que o teatro não diga respeito à realidade (como, de resto, tudo), mas, pensando em uma situação trivial, representar uma prostituta não se reduz a contratar uma moça na Major Sertório – a moça em questão exerce seu ofício lá, na Major Sertório, não no Teatro Arena, logo, ela obedece outros imperativos, outro jogo de cena, e a transposição de um ao outro é muito menos óbvia do que sonha nossa vã dramaturgia.
Chego, enfim, ao início do meu assunto: JOGO DE CENA, o problema, a situação, os limites, tudo está no novo filme de Eduardo Coutinho. Digo filme, e completo: não seria documentário? A melhor resposta parece ser a negativa. Eduardo Coutinho não faz documentário, pelo menos o documentário que se esperaria. Eduardo Coutinho faz um cinema de ensaio para pensar o documentário, o que significa que de algum modo ele já está fora do documentário, que aqui é índice de uma problema maior que ele parece perseguir desde “Cabra Marcado para Morrer”: lá, com todo peso do cinema engajado, a tentativa de filmar a inédita organização dos camponeses sob as Ligas Camponesas desdobra-se na pergunta pelo o que está por detrás do cinema. Coutinho passa das personagens (“reais” ou “imaginárias”) às pessoas por detrás das personagens. Em JOGO DE CENA, coroando um percurso estético e crítico, faz como que o caminho de volta: pergunta como as pessoas transmutam-se em personagens. Da pergunta pela realidade por detrás de uma filme interrompido abruptamente pela própria realidade (o golpe de 64) à pergunta sobre como é possível representar a realidade, se há no fundo da película (mantenho o registro anacrônico) algo mais do que sais de prata, Coutinho constituiu um itinerário e persegue a mesma pergunta-problema, que se renova a cada tentativa de filmá-la. A longevidade de seu projeto, sua permanência a despeito das modas, das crises e das mudanças de moeda, tudo isto pode dar uma falsa impressão sobre a força do documentário brasileiro ou de que há um documentário brasileiro: plano fechado, depoimento, “close”, corta, plano aberto, situação. Tudo muito bem explicado. Não parece ser esse o caso.
Assim como o sertanejo pirrônico de “O fim e o princípio” que não aceitava perguntas que não pudesse responder com outras perguntas, o que se chama documentário, em Coutinho, é muito mais uma pergunta pelo documentário do que uma definição do documentário. O que fica sugerido é que o compromisso de Coutinho não é com uma forma, mas com uma forma de pergunta.
A permanência desse tema, sua transformação em legítima inquietação estética, parece-me muito mais idiossincrática que coletiva: Coutinho não deve ser entendido como patrono do documentário brasileiro, mas o problema por excelência do documentário brasileiro: como fazer um documentário brasileiro ignorando o não-documentário de Coutinho, that is the question. Daí que nele o improviso tenha algo de método: ele não aceita roteirizar sua matéria, e poderíamos dizer deste homem que faz filmes sui generis, que ele é que foi roteirizado pela matéria que filma, sua obra é essencialmente resultado de uma ordem de matérias.
O que haveria mais distante disso que o documentário de resultado, que não se furta em tornar ornamental a matéria, geralmente “exótica”, que pretende capturar, formatar, “roteirizar”, que estetiza para a crítica especializada a multidão das possíveis curiosidades para o nosso público do cinema: o louco, o pobre, o migrante, o analfabeto, o deficiente, (e em um país superficialmente anti-racista e profundamente racista) o negro: todos merecem ser vistos. A pergunta é, como, sob que condições?
Truffaut, que era não apenas irretocável advogado do cinema de ficção como não perdia a oportunidade de detratar o “cinema de documentário”, para ele simulacro de cinema, falso cinema, via no documentário a tentativa de domesticar aquilo que é o próprio do cinema, o fato de ser instrumento de invenção. Documentário para ele significava esvaziar a ficção, esvaziar o possível em nome da realidade absoluta, definitiva, captada pelo fiador da verdade representado pelo documentarista: quem duvidaria do simpático, suado e bonachão proprietário de bar, segundo Trauffaut, a personagem ideal do documentário? E o problema de Truffaut era justamente esse: como é possível um cinema de certezas muito certas e verdadeiras, um cinema documento da verdade?
Conforme sua clivagem, o cinema abdicaria da sua mais estrita natureza: em vez de produzir imagens, ter-se-ia a impressão de “descrever a realidade”. Seria o documentário, enfim, o supremo fiador da realidade, da verdade verdadeira que nos libertará, o conseqüente passo do cinema engajado dos anos sessenta, comprometido com a realidade, para um cinema engolido pela realidade?
A resposta menos óbvia a estas ambivalências vem dos feitos do próprio documentarista: é ele que põe em dúvida o repertório de caras e bocas que captura não mais com a intenção de cercar-se das garantias da realidade, mas justamente de as pôr em dúvida. Eis o JOGO DE CENA.
Nesse filme inclassificável tudo se passe em um palco de teatro que tem ao fundo uma platéia vazia, pelo qual certo número de atrizes (famosas ou não) e pessoas comuns contam uma história pessoal diretamente a ele (de novo, de costas para o público do teatro, de frente para o público do cinema). E o que se vê? Para todos os casos, a verdade é jogo de cena, não menos verdadeira, não menos representada, isto é, as marcas de “realidade” captada pelo documentário são tão convencionais quanto as da ficção, e a verdade pode estar tanto em uma quanto em outra.
A conclusão óbvia a se tirar seria a de que tudo é relativo, de que diante de um outro qualquer, diante do espelho do banheiro, não há senão representação – mesmo para uma platéia ausente vivemos a constante vertigem da representação, de sermos personagens de nós mesmos.
Esta não parece ser, entretanto, a melhor nem a única conclusão. O jogo de cena, em Coutinho, é tanto instrumento estético quanto político: daí que filmando quem ele filma, seu caráter popular e inquietante. Ao aceitar esse JOGO DE CENA, Coutinho aceita que esse outro do documentário, o tipo exótico expostos nos cineclubes, não se resuma a uma teoria, a uma definição estrita, nem se sujeite a violência de uma forma que lhe é estranha. Mas aceitar ir ao encontro do outro, aceitar ouvi-lo sem as garantias de uma firma reconhecida requer certa arte e exige certos riscos.
Em JOGO DE CENA há verdade, mas não aquela que se esperaria de um documentário qualquer, a verdade verdadeira do dono de bar. Há sim uma verdade superior e vaga, improvisada, um tanto selvagem: a verdade do outro. Dir-se-ia, em outros tempos, talvez mesmo a verdade de um compromisso: reconhecer que esse outro ideal do documentário, algum mordomo interessante, que diariamente invade nossas casas como um serviçal eficiente, mesmo idealizado pelas molduras do documentário, pode possuir astúcia suficiente para não se entregar inteiro e, enquanto resiste, sobrevive. O culpado pode realmente ser o mordomo. O que deve parecer trivial – reconhecer o outro – tem nesse filme uma generosidade específica, e levando em conta a filmografia particular de Coutinho, diríamos, uma generosidade de classe: jogo de cena em Coutinho é uma forma estética de recusar a violência nua e crua de classe, tão brasileira, tão nossa. Eis seu JOGO DE CENA.
Esse outro ou essa imagem do outro que Coutinho persegue, tão estranhos ao respeitável público, revela que o melhor para ser filmado, a imagem que deveria interessar, está longe dos problemas que rodeiam as salas de exibição, que está escondido em algum lugar vasto e irremediavelmente perdido. Talvez a melhor imagem de nós mesmo seja ainda aquela que não se revela, aquela que o jogo de cena esconde, mas deixa que imaginemos.
Concluo com Macbeth:
Seyton : The queen, my lord, is dead
Macbeth : She should have died herafter
There would habe been a time for such a word...
Tomorrow, and tomorrow, and tomorrow
Creeps in the petty pace from day to day
To the last syllable or recorded time
And all our yesterdays have lighte fools
The way to dusty death. Out, out, breif candle!
Life's but a walking shadow; a poor player,
That struts and frets his hour upon the stage,
And then is heard no more: it is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing
(em tradução livre e macarrônica)
A rainha está morta, Alteza

Ela deveria morrer um pouco depois
Haveria tido tempo para aquela palavra
Amanhã, e amanhã, e amanhã
Marca sua enviesada senda dia a dia
até a última sílaba ou porção de tempo registrado
E todos nossos ontens têm luminosas tolices
(Até) o caminho da morte empoeirada. Fora, fora, efêmera vela!
A vida não é senão sombras penadas; um pobre ator
Que orgulhoso e desajeitado falha no momento de sua fala
E nada mais é ouvido: eis a fábula
contada por um idiota, pleno de som e fúria,
significando nada

AOTC

Planeta X tudo

As férias são ocasião de... difícil definir (ou ocasião de redefinir tudo? Não sei. Nossas férias de verão coincidem com o novo ano: tudo pode melhorar). Em estado de dicionário é o período de descanso, período legal, poderíamos completar, pois apenas mediante força da lei se suspende o trabalho. Nem sempre a lei é tão forte, e para mitigar sua fraqueza já se criou a figura das férias “vendidas”, melhor que as férias simplesmente suprimidas. E nesse caso vendemos – e apenas os que estão sob o império das leis – o direito de não trabalhar em nome do sagrado trabalho (e do mais sagrado dinheiro). Mas há de se supor que este caso seja uma exceção. Não vendo minhas férias porque não posso, a lei, mas se pudesse talvez, apenas talvez, não as venderia. Ninguém resiste ao mundo administrado. Voltemos a definição: por que as nossas prosaicas férias seriam assim tão difícil de definir? Este é meu mote, e as voltas que dou ainda não me levaram a lugar algum. Vejamos. Se o trabalho nos persegue e nos encontra mesmo quando tentamos nos esconder, se o oposto ao trabalho não é o simplesmente não fazer nada, mas fazer uma outra coisa (que não se encontra) a dificuldade em definí-la vem daí. As férias deveriam ser afinal o oposto do trabalho, quer dizer, um outro tempo que o tempo morto em que somos simplesmente produtivo. Mas este outro tempo (que haja) nenhuma lei nos garante. Estava de férias afinal e resolvi fazer o prosaico, com algum esperança pelo intempestivo. Comer um sanduíche no fim de noite não parece nem perigoso nem inusitado. Sequer “diferente”. É apenas o oposto a ficar em casa. Notemos, entretanto, que por muito tempo, em Joinville, toda a diversão e mistério gastronômicos se resumiam a uma visita a um carrinho de lanche. Joinville de outrora era o planeta X tudo. Nada de restaurantes, degustação de vinhos, cozinheiros com nome de “chefs”, pratos assinados... Toda a experiência gustativa joinvillense se resumia ao X salada e a multiplicação geométrica que ele poderia submeter-se tornando-se assim o X tudo, o X tudo no prato. O X salada era a medida de todas as coisas. Dos vários “carrinhos” de lanche (a expressão soa mesmo estranha para os não iniciados) há alguns que alcançaram o status de lenda: falo do X tudo do “Magrão”, que sobreviveu aos novos hábitos da classe média local, ao fim da boate do Tennis Club, a concorrência do “Gordão” do outro lado do rio, a sua própria localização ao lado do rio, e ao atendimento “degoutant” que sempre o caracterizou e não só formou sua identidade como forjou uma lenda... O sanduíche do Magrão era (ou ainda é, mas o presente o tomo a título de hipótese) o supremo desafio da noite. Não era um alento, era uma afronta. Lembro do Dezinho, cujas aventuras noturnas eram (talvez sejam) por si só lenda e mito, confessar que comer um sanduíche inteiro do Magrão era o mais agudo desafio psicológico que enfrentara. O mesmo Dezinho que encarou o antigo Tropical Dance da rua Butantan apenas com arma branca, entrou no Carioca Clube de camisa aberta, e dormiu no Gitana e acordou em Cotia... O lanche do Magrão, como se vê, não era para qualquer um. Estendo-me demais no Magrão. Não era dele e de sua cozinha de décima quinta categoria que pretendia falar. Comecei com as férias. Volto a elas. Procurando os tempos de antanho decidi nessas minhas férias voltar a prática do X salada, que tanto praticara quando era só um menino do Glória, torcendo para conseguir beijar a Ana Paula (ex namorada do Dudu) na festa da Anita: o X salada joinvillense é uma suprema experiência proustiana. E por onde andam as neves de antanho?, já se perguntou o poetinha. Em Joinville não neva, mas ainda se tem saudades. Tempos em que as vitórias no Glória Futebol Club eram comemorados com um modesto X salada. E decidi, anos acumulados de experiência, esquecimento e memória, voltar ao X salada de antanho. Fui então ao Rodrigues, que poderia reputar como uma lenda do bairro, mas ele é mais que isso. O Rodrigues foi o continuador de um tradicionalíssimo ponto de carrinho de lanches na XV de Novembro, antes tocado por um chapeiro cujo nome me escapa, mas a quem faltava o antebraço direito. Foi do Rodrigues o inusitado X banha, oferecido aos frequentadores da soirée do Glória (a conhecida domingueira) num ímpeto de desafio. Como era Raian, filho do Rodrigues, hoje técnico em telecomunicações, ex futuro centroavente e goleador do nosso Jec. Vejam, pedir o X salada/galinha do Rodrigues não é apenas voltar a essas lembranças dispersas e afetiva. É isso e muito mais. É voltar no tempo para tirar as merecidas férias desse nosso tempo. Rodrigues, que, como dizíamos, começou na rua XV de Novembro, era não apenas um carrinho de lanche, mas toda uma enciclopédia das fofocas locais e do folclore das fofocas locais. Lembro-me de quando me contou muito naturalmente que um chapeiro de outro carrinho de lanches havia abandonado a mulher para se casar com o contador. O fato que poderia parecer escandaloso, tinha um verniz tão naturalmente maledicente que sob o pretexto de falar mal de tal sujeito – que era o que interessava – poderíamos dizer, com o mesmo tom, que ele havia ganhado na loteria. Houve uma primeira mudança quando ele passou à Max Colin, esquina com a Marquês de Olinda (que também fora, de modo efêmero, um carrinho de lanche. Foi lá, se não me engano que o Nádio destruiu uma mesa de pebolin, sem muita cerimônia). Hoje está ainda a Max Colin defronte a Regente Feijó. Sobreviveu as mudanças da cidade, aos golpes do mercado imobiliário, ao envelhecimento e a falta de dentes. Está miseravelmente banguela, não sei se por falta de dinheiro ou por voto espiritual. Reinventou-se, mas como toda personagem fiel a seu tempo e a outros tempos não entendeu muito o que mudou. Dos projetos de um frigorífico em Itajaí ou de uma empresa de terraplanagem, foi nada ou quase nada que ficou. Mas mantém-se firme no seu carrinho de lanche. E foi lá que fui procurar um X salada/galinha místico, de outros tempos, reinventando um tempo e um lugar que já passou. Mas chegando lá Rodrigues não entendeu minha peregrinação. Tumultuou-me com uma infinidade de assuntos e curiosidades. Era o próprio Rodrigues. Era Rodrigues imitando Rodrigues. Filhos, futebol, as últimas notícias, por onde andavam este e aquele. Em uma avalanche, veio-me me consultar como um oráculo, quando era eu que procurava a bendita salvação do X salada. Pensou que eu fora trivialmente comer um X salada – nesse caso, um salada/galinha – e não me deu o silêncio merecido da meditação. Comer um X salada é toda uma meditação sobre um tempo que não volta mais. Mas é uma meditação mais profunda que uma meditação meditação. É o verdadeiro pensamento com a barriga. Não entendi tanto assédio, e confesso que esta quebra de liturgia me incomodou. Já em casa, tarde da noite, procurando, um pouco em desespero água para matar a sede infinita que tais extravagâncias provocam, entendi o chamado do Rodrigues: “Seus discípulos perguntavam-lhe o que significaria tal parábola. Ele respondeu: 'A vós foi dado conhecer os mistérios do Reino de Deus; aos outros, porém, em parábolas, a fim de vejam sem ver e ouçam sem entender”(Lc, 8, 9-10). É meus amigos, toda palavra é sim uma semente.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Ano novo vida velha

Releio texto de Paul Krugman de 29 de dezembro de 2009, publicado entre nós por “O Estado de São Paulo”. E já me pergunto, quando foi 29 de dezembro de 2009? Parece uma data longínqua, dessas a ilustrar uma lembrança obrigatória, por força de lei. Dia de Fulano de Tal, dia do representante comercial, dia do optometrista. Todos de menção merecida e pouco lembrada. Deus está nos detalhes, já se disse. Mas sempre se esquece deles. E me detenho um pouco nesta impressão: um 29 de dezembro. Lembro-me de quando li o texto (e não faz assim um século): havia ainda um ano novo a ultrapassar, com seus rituais de bons augúrios, roupas brancas, fogos de artifício e uma certa selvageria só tolerada graças a algum álcool. Agora tudo já passou. De todo modo, o artigo permanece, com seu título obsessivo: o grande zero. E seria muito fácil tomar o título como uma deixa autobiográfica: meu grande zero; depois do trauma do primeiro seis e meio que me foi dado pela Tia Cecília, no exercício de minhas primeiras letras, tenho acumulado zeros com maior ou menor vergonha, às vezes desavergonhadamente, com o perdão da (má) palavra.
Voltando ao artigo, descobrimos que o grande zero é muito mais grave que as vicissitudes de uma vidinha qualquer. No caso, a minha. E ele não é dado apenas a um ano prestes a acabar, mas a uma década em que nada foi aprendido. Vale lembrar, o ano que acabou foi o ano de uma grave ou gravíssima crise econômica. E passou sem que boa parte dela tenha sido entendida, sem que nos déssemos conta de que recusar aprender com ela é gravíssimo ou mais. Eis o grande zero. No primeiro momento, com muito sangue de Wall Street sendo imolado no altar do Tesouro Americano, ficou de bom tom que aqui ou ali um intelectual ou outro desse o ar de sua (trágica) graça: o capitalismo acabou (e cômica graça, repitamos). Mas não acabou, nem se sabe o que lhe sucede. Os fracassos da rodada de Doha e do COP 15, por sua vez, ilustram aquilo que é a verdade do sistema mundial: uma rígida hierarquia de monopólios que prescindem de “mercados” dita o dia a dia do “mercado” de peixe e de pão. Este é nosso mundo. Entre os dois andares não há mágica democrática, há apenas conformismo e resistência. Daí, novamente, nosso grande zero. Zero na economia, zero na vida, zero no amor. Estamos lutando para perder de pouco, certos da derrota. (Roubo a frase de um confrade, citada, normalmente, para todo e qualquer contexto).
Mais ou menos conclui Paul Krugman: “Foi a década em que nada realizamos e nada aprendemos”. E passamos a vida à toa, à toa (citando um sábio de outra ciência que a economia).
Jecmania
Amigo recomenda leitura de blogue em que sugere ser colaborador http://jecmania.blogspot.com/2009_12_01_archive.html
Como o nome indica, é um blogue de torcedores, no caso de um time da série D, o outrora mais famoso Joinville Sport Club. Solidarizo-me com os torcedores em geral, são generosos por natureza. Nesse caso, mais ainda, já que a frase roubada acima já foi usada para explicar a natureza desse time mais de uma vez. Jecmania é uma irmandade (talvez uma seita) de incorrigíveis generosos. Mas algo me incomoda: diz reiterada vezes (não li tudo, tenho certo horror a erudição) “este espaço não é para “simplesmente criticar o time”. Fico no “simplesmente criticar”. Mas faço um parêntesis. Meu amigo querido que confessou ser um dos colaboradores ou o colaborador do blogue é amigo de uma verdade sem par. Reputo sua sinceridade a de um heróico tribuno da plebe. E o entendo. Ele não quer a discussão estéril dos que não tem nada a dizer. Ele quer falar da sua generosidade de torcedor. Fecho o parêntesis. Volto ao “simplesmente criticar”: é meu único interesse palpável. Daí o grande zero que abre este texto. Estou condenado ao grande zero. Como a economia mundial, não estou disposto a aprender com as crises. Diz Paul Krugman, mais uma vez, sobre a experiência econômica da última década: “quando, de tudo isto, se mostrou verdadeiro? Zero” Repito, e o quando da vida é verdadeiro? Tirante os generosos e os torcedores fanáticos, vamos todos ao inferno. E feliz e próspero ano novo.

Leia
http://danobrearte.blogspot.com
http://revolvernamaodomacaco.zip.net/
http://jecmania.blogspot.com/2009_12_01_archive.html