terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Planeta X tudo

As férias são ocasião de... difícil definir (ou ocasião de redefinir tudo? Não sei. Nossas férias de verão coincidem com o novo ano: tudo pode melhorar). Em estado de dicionário é o período de descanso, período legal, poderíamos completar, pois apenas mediante força da lei se suspende o trabalho. Nem sempre a lei é tão forte, e para mitigar sua fraqueza já se criou a figura das férias “vendidas”, melhor que as férias simplesmente suprimidas. E nesse caso vendemos – e apenas os que estão sob o império das leis – o direito de não trabalhar em nome do sagrado trabalho (e do mais sagrado dinheiro). Mas há de se supor que este caso seja uma exceção. Não vendo minhas férias porque não posso, a lei, mas se pudesse talvez, apenas talvez, não as venderia. Ninguém resiste ao mundo administrado. Voltemos a definição: por que as nossas prosaicas férias seriam assim tão difícil de definir? Este é meu mote, e as voltas que dou ainda não me levaram a lugar algum. Vejamos. Se o trabalho nos persegue e nos encontra mesmo quando tentamos nos esconder, se o oposto ao trabalho não é o simplesmente não fazer nada, mas fazer uma outra coisa (que não se encontra) a dificuldade em definí-la vem daí. As férias deveriam ser afinal o oposto do trabalho, quer dizer, um outro tempo que o tempo morto em que somos simplesmente produtivo. Mas este outro tempo (que haja) nenhuma lei nos garante. Estava de férias afinal e resolvi fazer o prosaico, com algum esperança pelo intempestivo. Comer um sanduíche no fim de noite não parece nem perigoso nem inusitado. Sequer “diferente”. É apenas o oposto a ficar em casa. Notemos, entretanto, que por muito tempo, em Joinville, toda a diversão e mistério gastronômicos se resumiam a uma visita a um carrinho de lanche. Joinville de outrora era o planeta X tudo. Nada de restaurantes, degustação de vinhos, cozinheiros com nome de “chefs”, pratos assinados... Toda a experiência gustativa joinvillense se resumia ao X salada e a multiplicação geométrica que ele poderia submeter-se tornando-se assim o X tudo, o X tudo no prato. O X salada era a medida de todas as coisas. Dos vários “carrinhos” de lanche (a expressão soa mesmo estranha para os não iniciados) há alguns que alcançaram o status de lenda: falo do X tudo do “Magrão”, que sobreviveu aos novos hábitos da classe média local, ao fim da boate do Tennis Club, a concorrência do “Gordão” do outro lado do rio, a sua própria localização ao lado do rio, e ao atendimento “degoutant” que sempre o caracterizou e não só formou sua identidade como forjou uma lenda... O sanduíche do Magrão era (ou ainda é, mas o presente o tomo a título de hipótese) o supremo desafio da noite. Não era um alento, era uma afronta. Lembro do Dezinho, cujas aventuras noturnas eram (talvez sejam) por si só lenda e mito, confessar que comer um sanduíche inteiro do Magrão era o mais agudo desafio psicológico que enfrentara. O mesmo Dezinho que encarou o antigo Tropical Dance da rua Butantan apenas com arma branca, entrou no Carioca Clube de camisa aberta, e dormiu no Gitana e acordou em Cotia... O lanche do Magrão, como se vê, não era para qualquer um. Estendo-me demais no Magrão. Não era dele e de sua cozinha de décima quinta categoria que pretendia falar. Comecei com as férias. Volto a elas. Procurando os tempos de antanho decidi nessas minhas férias voltar a prática do X salada, que tanto praticara quando era só um menino do Glória, torcendo para conseguir beijar a Ana Paula (ex namorada do Dudu) na festa da Anita: o X salada joinvillense é uma suprema experiência proustiana. E por onde andam as neves de antanho?, já se perguntou o poetinha. Em Joinville não neva, mas ainda se tem saudades. Tempos em que as vitórias no Glória Futebol Club eram comemorados com um modesto X salada. E decidi, anos acumulados de experiência, esquecimento e memória, voltar ao X salada de antanho. Fui então ao Rodrigues, que poderia reputar como uma lenda do bairro, mas ele é mais que isso. O Rodrigues foi o continuador de um tradicionalíssimo ponto de carrinho de lanches na XV de Novembro, antes tocado por um chapeiro cujo nome me escapa, mas a quem faltava o antebraço direito. Foi do Rodrigues o inusitado X banha, oferecido aos frequentadores da soirée do Glória (a conhecida domingueira) num ímpeto de desafio. Como era Raian, filho do Rodrigues, hoje técnico em telecomunicações, ex futuro centroavente e goleador do nosso Jec. Vejam, pedir o X salada/galinha do Rodrigues não é apenas voltar a essas lembranças dispersas e afetiva. É isso e muito mais. É voltar no tempo para tirar as merecidas férias desse nosso tempo. Rodrigues, que, como dizíamos, começou na rua XV de Novembro, era não apenas um carrinho de lanche, mas toda uma enciclopédia das fofocas locais e do folclore das fofocas locais. Lembro-me de quando me contou muito naturalmente que um chapeiro de outro carrinho de lanches havia abandonado a mulher para se casar com o contador. O fato que poderia parecer escandaloso, tinha um verniz tão naturalmente maledicente que sob o pretexto de falar mal de tal sujeito – que era o que interessava – poderíamos dizer, com o mesmo tom, que ele havia ganhado na loteria. Houve uma primeira mudança quando ele passou à Max Colin, esquina com a Marquês de Olinda (que também fora, de modo efêmero, um carrinho de lanche. Foi lá, se não me engano que o Nádio destruiu uma mesa de pebolin, sem muita cerimônia). Hoje está ainda a Max Colin defronte a Regente Feijó. Sobreviveu as mudanças da cidade, aos golpes do mercado imobiliário, ao envelhecimento e a falta de dentes. Está miseravelmente banguela, não sei se por falta de dinheiro ou por voto espiritual. Reinventou-se, mas como toda personagem fiel a seu tempo e a outros tempos não entendeu muito o que mudou. Dos projetos de um frigorífico em Itajaí ou de uma empresa de terraplanagem, foi nada ou quase nada que ficou. Mas mantém-se firme no seu carrinho de lanche. E foi lá que fui procurar um X salada/galinha místico, de outros tempos, reinventando um tempo e um lugar que já passou. Mas chegando lá Rodrigues não entendeu minha peregrinação. Tumultuou-me com uma infinidade de assuntos e curiosidades. Era o próprio Rodrigues. Era Rodrigues imitando Rodrigues. Filhos, futebol, as últimas notícias, por onde andavam este e aquele. Em uma avalanche, veio-me me consultar como um oráculo, quando era eu que procurava a bendita salvação do X salada. Pensou que eu fora trivialmente comer um X salada – nesse caso, um salada/galinha – e não me deu o silêncio merecido da meditação. Comer um X salada é toda uma meditação sobre um tempo que não volta mais. Mas é uma meditação mais profunda que uma meditação meditação. É o verdadeiro pensamento com a barriga. Não entendi tanto assédio, e confesso que esta quebra de liturgia me incomodou. Já em casa, tarde da noite, procurando, um pouco em desespero água para matar a sede infinita que tais extravagâncias provocam, entendi o chamado do Rodrigues: “Seus discípulos perguntavam-lhe o que significaria tal parábola. Ele respondeu: 'A vós foi dado conhecer os mistérios do Reino de Deus; aos outros, porém, em parábolas, a fim de vejam sem ver e ouçam sem entender”(Lc, 8, 9-10). É meus amigos, toda palavra é sim uma semente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário