segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Da arte de falar mal ou da serventia das idéias fixas

Da arte de falar mal
(ou da serventia das idéias fixas).

As mães pouco sabem dos filhos, salvo que são seus filhos. Desnecessário dizer que os filhos sabem quase nada. Este dado fundamental deve ser tenazmente preservado. Se mães e filhos se perdem dificilmente se encontram. O laço mágico raramente suporta os atos da deliberação humana. As mães não querem, porém, outra coisa senão seus filhos: e se a vida lhes oferece outras vocações e ocupações – criminosos, mentirosos, contrabandistas, estelionatários, assassinos confessos, adúlteros ou pecadores de baixo impacto –, se há ainda mães neste mundo, eles serão apenas filhos, os filhos seus (sem as penas previstas nos códigos penais e morais). A força desse laço vem daí: a ignorância de tudo os liga absolutamente. O amor de mãe é superficial por profundidade – não é nem mais nem menos verdadeiro, é de outra espécie.
A mãe é a suprema fiadora de todos nossos pecados. Mesmo se todos fôssemos terrivelmente maus. (Por mais terríveis que possamos ser, há o último recurso da mãe).
Às sextas-feiras tenho almoços religiosos com minha mãe. Tratamos de quase nada de importante e apenas reiteramos a formalidade mágica de sermos mãe e filho. Assim, todas as críticas que me faz minha mãe nesses sagrados almoços de sextas-feiras não são senão diversões circulando o nosso fato fundamental. E os entendo desta maneira: também tenho meus momentos de profundidade superficial.
Lembro-me disso a propósito de um de seus comentários sobre os meus maus hábitos (que não são poucos). Ela não se furtou em me chamar num canto e disparar verdades sobre minha pobre e triste vida. Todas verdades verdadeiras, se o mundo fosse mundo. Mas não é (e deveria ser?). E eu, que não resisto às verdades, entrego-me sem mais à facilidade das mentiras.
Foi em um desses almoços, estando eu já preste a desfiar o rosário da maledicência, bem disposto a enumerar as contas do mal falar em que me especializo (extensão mais ou menos geral de uma mal amar constante e apaixonado, eu que amo mal e erradamente), preparando-me já para outro ritual incorporado à minha vida, que me ocorreu, imprevista, a verdade deste impulso atávico: falar mal, de tudo e de todos, um artesanato fino e sofisticado, uma nobre arte. Assim, foi se criando meu bestiário pessoal, composto de fatos, pessoas, situações e ressentimentos triviais, que periodicamente exorcizo com palavras mágicas e, sob a fumaça intensa da maledicência, num repetido ritual em que procuro me libertar do inútil peso de minha modesta humanidade. A arte deve ser um exercício que se repete sempre com o sentido renovado.
Revelo pois um segredo, não dos mais secretos, eu que sou um péssimo guardador de segredos. Às sextas-feiras reúne-se a sociedade secreta dos maledicentes. Acredite-se, trata-se de uma sociedade de alcance mundial. A reunião é em local público. Como saber o motivo íntimo e insondável que reúne seus membros em torno de uma mesa para conscienciosamente, de maneira aplicada, desacreditar esse mundo? Como encontrar o nexo secreto disso tudo, a verdade desse encontro marcado quase que pela infâmia e pelo opróbrio? Todo o segredo está no que não se vê. (Não é esta a própria definição de segredo?) Não ser feliz tudo explica.
Há, entretanto, muita confusão nestas confissões súbitas. Eu que sou confuso e afeito a confissões súbitas, redobro o problema. Em minha defesa em face dos bons costumes, reitero: não sou fofoqueiro (palavra, aliás, antipática). A fofoca tem uma pretensão completamente estranha à maledicência (e às minhas próprias pretensões). A fofoca pretende ser a revelação crucial de uma verdade oculta e inconfessável. Há ainda outro elemento na fofoca. O fofoqueiro não pretende ser fofoqueiro, pretende esconder-se e proteger-se atrás de uma verdade oculta e alheia. O cotidiano pecado mortal (sobretudo se for de parente ou de vizinho) é o último bastião do velhaco. Vejam, o velhaco pretende ser ungido em praça pública por obra e graça de uma verdade que não lhe pertence. Uma vez a verdade posta, para o bem e para o mal de suas vítimas, no cúmulo de sua modéstia orgulhosa, o velhaco, que pretende ser reconhecido como veículo inevitável da verdade, conclui as artes de seu ofício com o célebre “eu te disse”. Depois, sai de cena e volta ao seu cotidiano de guarda-costas do pecado alheio. A fofoca reporta-se à teoria da verdade como adequação: o revelado deve corresponder a um fato inegável, porém, oculto. Nada mais dessemelhante à maledicência.
A maledicência é heróica e não raras vezes solitária. A maledicência é um anticinismo íntimo e militante.
Não nego, nem reafirmo verdades (preocupação que abandonei recentemente). Nem está entre minhas obsessões a investigação dos defeitos alheios, e mesmo dos pecados alheios. No meu livro de Salmos o pecado alheio perdeu importância. Os defeitos alheios são também apenas isso, defeitos dos outros. Não sou portador nem de uma ciência nem de uma moral. O outro não me interessa em sua originalidade, profundidade, genialidade. Já quase não me interesso por mim, o interesse pelo outro minha preguiça desarma. O que me interessa é apenas este objeto gratuito, quase sem substância, que a vaga noção de humanidade me oferece e obriga-me: este mau humor de funcionário público, este ônibus atrasado, a falta de troco, a calçada esburacada e o preço do pão.
Se a tudo devotasse apenas o interesse prático de fofoqueiro, de diretor de almas, dos pregadores de verdade, se aos objetos de predileção universal devotasse o olhar compromissado daqueles com profissão, não teria nem o physique du rôle nem a vocação necessária à distinta arte. Também fui educado pela contemplação, forma superior de preguiça, que me ensinou a pensar (e só pensar) no que está fora do alcance das mãos. Como um corolário infeliz, habituou-me a desejar todas as mulheres impossíveis – e depois de pensar, desistir – o que, aliás, não contribui muito para minha carreira de Dom Juan transcendental. A preguiça, forma elementar de se pensar com o corpo, também produz flores raras. Em um mundo em que o trabalho – principalmente se for apropriado do outro – tornou-se verdade absoluta, à preguiça cabe uma dura tarefa crítica. Mas onde está o mundo? O mundo só se permite oferecer o que está ao alcance da mão de cada um, por isso é muito pouco e muito pequeno. Ainda que seja pouco o que venha eu a ter, muito mais tenho com a nobre arte. (O descrédito com a humanidade é a esperança que me cabe de, um dia, todos desacreditados, sejamos fiéis depositários de nossa falta de valor).
Como já dissera, as confissões súbitas, por vezes, assaltam a calma inofensiva da minha alma. Enfrento dilemas espirituais e me aborreço demais. Adoto as partes irreais das coisas reais, tiro de mim as partes mais irreais das coisas reais, sou um militante do absurdo. O aborrecimento é a forma de desejo imediato por fantasias. E me aborreço demais. Principalmente com quase todos os da minha espécie. Há, porém, meus queridos amigos, com quem divido meus vários pecados e minhas confissões atrasadas. E revelo parte dessas confissões. Sou tremendamente invejoso, a tal ponto que invejo da criança o pirulito que não tive. Minha inveja é a forma patológica que a pequenez do mundo assume em mim. Toda noite sonho com uma coleção de guloseimas imaginárias. Pela manhã acordo com uma inveja gulosa e redobrada. Mas é a inveja dos desocupados que mais me assola. O tempo livre é um luxo dos proprietários.
E é a inveja dos desocupados que me provoca, por vezes, a piedade súbita da humanidade (como é comum nesses casos, também uma autopiedade irresistível). Pensar na humanidade, que ela exista ou deva existir, é desfrutar também do luxo da ociosidade. No emaranhado de um desses meus típicos dilemas espirituais, deparei-me com a seguinte dúvida: a maledicência das sextas-feiras, fim de tarde, celebrada com uns poucos e essenciais amigos, melhora-me, oferece-me afinal uma insuspeitada sabedoria? A palavra “humanidade” ainda é tão poderosa que sua simples menção já me leva às cercanias da “sabedoria”. Mas não se trata disso. Não é a maledicência que enche o coração dos infelizes de sabedoria: é a irrelevância da maledicência que nos tranqüiliza. Talvez a maledicência seja um disfarce a nossa própria irrelevância, e nesse caso, uma forma superior de consciência. Pois note: não são vitoriosos sempre os mais ponderados, sempre os mais calmos, sempre os mais razoáveis, sempre os justos adeptos dos bons costumes? No exercício da maledicência compartilho a fidalguia dos que têm o direito de mando: aos invejosos, aos corintianos, aos perdedores, aos rebaixados, aos excluídos, respondo com a máxima que enverniza a botina dos poderosos: só o amor constrói, sabendo, entretanto, a mentira que essa verdade esconde – só o poder constrói porque só o poder destrói. A sabedoria do vitorioso é ter a certeza da última e da única palavra – no nosso modesto mundo esta parece ser a única sabedoria possível. Somos apenas expectadores inexperientes.
Mas não nos desesperemos. Ainda haverá o que fazer. Mesmo que não chegue o dia em que a humanidade seja moeda sem mais valor de troca, talvez chegue o dia em que nós estejamos libertos da arte de falar mal. Nada mais nos unirá, nada nos separará, e na escuridão do abismo sentiremos o conforto da indiferença absoluta e essencial. Adquiro agora ares de profeta filósofo. Não há patologia que não mereça seus cuidados. As contas feitas, somos uma coleção mais ou menos uniforme de manias, e me desculpo pelas minhas.
A operação de crédito é o segredo da humanidade e da maledicência: com crédito gastamos o que não temos, com a maledicência hipotecamos uma humanidade que já não há. Semelhança hipotecada por algum Banco de Crédito e Comércio. Nesta vida mesmo pelo que não se faz, se paga.
Insisto, poderia ainda discorrer sobre as implicações morais da arte: a nobre arte, esta distinta arte é uma disposição moral em relação ao mundo: a única verdade que lhe concerne é o imperativo que a constitui. Não importa o que se diz, seja verdade, seja outra coisa, apenas importa como isso deve ser dito: esse mal falar dos outros deve ser uma nobre e distinta arte, ainda que condenada à irrelevância da arte, extensão menos complexa da irrelevância deste nosso mundo. O compromisso da arte com o mundo é descompromissado, como a beleza nada tem a ver com a alma que lhe corresponde: a beleza e a arte são gratuitas e ociosas. Diria mais, com um acento maledicente: a beleza e a arte são tremendamente preguiçosas. A tradução popular desta cláusula estética já recebeu sua versão de almanaque de fortificante: as mais bonitas são as mais ordinárias. Mas note: isso não as faz menos desejadas. Talvez tudo isso ainda não seja o suficiente para definir a maledicência, seus porquês, sua necessidade vital para os mais entre os mais aborrecidos da espécie, nem para definir os meus aborrecidos arroubos de mim mesmo, meu amor inquebrantável aos amigos, às mulheres imaginárias, às impossíveis, e às irreais, a pouca coragem insistente que exercito em nome de minhas preferências, aos sonhos que nos dispensam de viver, ao crédito barato e a tudo que nos ajuda a expiar nossas culpas por todos os crimes de fantasia cometidos. Mas veja: como se tivesse matado um homem e ainda me considerasse uma pessoa honrada e andasse por aí como um anjo pálido, assim a arte me ensina a não viver a não vida que nos resta.
Na falta do que fazer, na falta do que ser, na falta de onde estar, há o último recurso dessa reação imaginária, irrestrita, impertinente. Falar mal de tudo e de todos, falar mal dos outros até que o mundo se refaça. Oh humanos libertem para sempre minha alma bovina, deixem-me ruminar minha pouca verdade: estou desarmado, mas não vencido; confesso, não aceito desculpas.

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