segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Acerto de contas.


Época de balanço. Com ou sem interrogação.  Não sei. Então seria com interrogação. Difícil saber se toda dúvida é interrogação. Sigamos. Faço os meus balanços, entre dois mundos, com vem sendo meu hábito. Os primeiros natais de cada vida (eu sei que o natal acaba de passar, mas ainda estou no clima do calendário) passam e depois são os rosários da culpa, filha direta e dileta da perda da inocência. Estranho pensar em culpa em meio a mil sonhos de consumo pobres, baratos ou caros (caríssimos para alguns), vendidos a parcelas fixas sem juros. Mas minha pobre alma cristã sempre me trai nessas horas, lembrando que, sim, culpa deve ter algo que ver com o natal, e no meio de toda essa celebração hedonista e algo vexatória, se se permite pensar na imensa maioria que vê o mundo dos prazeres pela vitrina de vidro à prova de balas, de almas, de reclamanções e de organização política. Assim, naturalmente, vem-me essa culpa de menino bobo, mal arrependido diante do último pito. Nesse caso, da vida. Volto sem querer aos desvãos de meu resto de alma cristã e penso que a redenção de todos dos males é a maior de todas nossas invenções, pois resolve de uma única vez todos os incômodos possíveis, do mal estar à unha encravada, passando pela traição, pela mentira, pela dor de cotovelo e pela culpa. Mas deixe-me voltar do infinito das minhas especulações para o finito comezinho do dia-a-dia. E não há fim em minha lista de pecados, deslizes, traições de maior e menor impacto, e maus pensamentos. Não tem fim mesmo. Não sei, porém, se são os tantos pecados que carrego que me levam a essa mal feita contabilidade de tudo, ou ter passado - dado novo - muito recentemente a barreira "psicológica" (cronológica, de fato, em sentido próprio e figurado) dos quarenta anos, ou, ainda, uma maturidade inesperada que vem das dívidas acumuladas, dos cálculos mal feitos, dos erros, dos negócios incertos, e dos namoros mal sucedidos, tudo vezes dez vezes dez. Cada um vive como pode. Sei que, de repente, olho para trás e não me animo muito com o que vejo. E, a título de balanço, como se diz, em meio ao desânimo geral, meu, vejo quantas vezes fui enganado, pouco esperto para muitos espertos e bobo demais para os quase ingênuos. Entre ilusões e enganos (pessoais e impessoais), algo trava-me a boca. Compreensível para quem vive de esperanças, não digo as mais vãs, mas as mais loucas e descabidas. Combinamos assim: enganos, erros, dívidas e feliz natal e próspero ano novo deixam qualquer um muito sentimental. Principalmente escorpiano com ascendente em idiota. Mas esta é a vida, sem melhores momentos e cenas dos próximo capítulo, geralmente. Estou, enfim, a reclamar de tudo, pode parecer, mas não chega a isso. É só o tradicional desabafo de fim de ano, gênero mais pobre e direto. Ocorre que esse desabafo me custa um pouco - há dores renais de origem metafísica que não há teodicéia a base de buscopan que resolva.
Não encerro assim, entretanto. Enquanto escrevia essas linha em um notável centro de compras do interior do estado do Paraná - Londrina, para ser mais exato - uma menina sentou-se ao meu lado, com o pai. Timidamente sussurrou algo para o pai que amplificou o sussurro e sabe-se lá por que captei uma mensagem indecisa vindo em minha direção. A surpresa é que aqueles mal articulados fonemas tinham me elegido como destinatário, e, voltando-me para pai e filha, pude entender o sentido de tudo, repentinamente: ela me oferecia uma castanha. Por que, não pude imediatamente compreender. Na sequência compreendi: não tinha porquê. No cúmulo da generosidade de criança, nem sempre presente nas crianças, a menina estendia-me a mão. A única honra desse mundo é a gratidão, e não haveria ser de outra forma. Àquele pequena menina dedico essas mal sapecadas linhas, oferecendo a modesta honra de minha gratidão, lembrando tudo que este lugar me lembra e que minha memória guarda: de minha querida amiga Patrícia, que estudou em Londrina, mas nasceu em Cruzália e hoje Cruzália vive nela, da antiga rodoviária do Artigas e do cine Ouro Verde, em Londrina, do café Catuaí, espécie de café doce e avermelhada, do meu irmão arquiteto que estudou em uma escola feita pelo mesmo Artigas, nascido em Londrina sabe-se lá quando, de quantas e  tantas crianças pobres e brilhantes, que já colheram café do pé, e limparam as folhas caídas ao pé do cafezal, ajudando os pais, antes de geada negra de 1975, e a todos que sobreviveram a grilagem, a pistolagem, a expulsão da terra e a probreza brasileira e hoje passeiam de bicicleta no centro da cidade, gratos pelo que a vida é sem entender direito o que a vida pode ser.
Mon grenier est une forteresse imprenable.

Um comentário:

  1. Um pouco lindo, um pouco triste, um pouco que dá um alívio no peito, como tudo que há.
    Saudades.

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