Diário da guerra do
porco – Diário de la guerra del cerdo.
Medir
a idade das coisas
não é simples. A ideia de antiguidade
pode estar ontem, no último bocejo: quem era aquele ali, escovando os dentes? O
mais estranho selvagem, de outras eras, em roupas de dormir? As medidas das coisas e suas exigências nem
sempre são fáceis. Quanto tempo
se passou no relógio
desde de que ele
despretensiosamente começou a
medir o tempo? O relógio finge, mas
não despreza a passagem do tempo: é uma mecânica consciência de si, que se
comunica com a linguagem pecular do tic-tac, tic-tac. Desde
a primeira frase? Desde
o último minuto? Foram vinte, trinta
segundos. E agora, mais um e outro. Difícil saber
(as horas contadas,
nenhuma soma feita,
resta quanto tempo?) o tempo das coisas.
As coisas talvez se
impregnem de outro tempo.
E o tempo medido e
contado em calendários,
relógios, aniversários
e prestações fica presos nesses aparatos.
Os anos conforme o
calendário, dia a
dia, são uma útil
convenção, e não
serei eu a negar
pela enésima vez a
utilidade das coisas,
de todas as coisas,
salvo as inúteis. As convenções
inventadas, entre tantos
utensílios que vestimos e
dispomos, e tantos cuidados possíveis com a higiene e a saúde
foram certamente bem inventadas.
É preciso mais do que
aceitar esse mundo
dos homens, é preciso
lhe dar vivas e
celebrar. Os meus
pendores revolucionários
param por aí, quer
dizer, por lá, lá
atrás, bem antes de
qualquer revolução,
possível, provável ou
imponderável. Dizer, afinal,
que, às
convenções escapa algo
de essencial, é só
mais um desses clichês
verdadeiros, sinal péssimo
estilo – e vamos
que o tempo passa.
Mas vá lá, nem
tudo na vida e
nos textos são a
pura poesia das esferas.
Há prosa, notícias de
jornal e bulas de
remédio, com o
texto incompreensível dos
efeitos colaterais.
Quanto
tempo passou? Nos olhos da minha filha?
Cada
coisa medida e guardada,
de repente, pode despertar de outra
era geológica, trazendo notícias
de um outra civilização
feita de amores e
suspiros incompreensíveis,
brigas épicas e inesperados
pedidos de perdão.
Não é só o homem olhando no espelho; é o homem atrás do espelho. Estes
repertórios da narrativa
íntima das coisas acabam
preenchendo um tempo
ao oriente do tempo e entre
um traço e outro
do mostrador do relógio
há um infinito caminho
de tangos, milongas e
brigas de amor. O
que é isso? De
onde vem esse vazio
entre os vazios do
que se vive muito
simplesmente como homem,
mulher, funcionário
apressado, cartomante,
pitonisa, cabeleireira, profeta amador
ou dona de casa?
Não
é bem esse meu
assunto (já falei
isso ou deveria me
repetir a esta
altura?). Resisto pouco,
porém, a que tais
digressões. Não é
raro lembrar a trivial
ocasião em que
entre dois ou três
anos passam mil ou
dois mil anos imaginários
e imaginados (a volta,
melhorado, do clichê),
cheios de tantas idas
e vindas, sustos, sopros,
ideias brilhantes, sucessos
possíveis e impossíveis
e meia dúzia de
fracassos retumbantes.
Poderíamos chamar isso
muito simplesmente de
vida – por sua falta
de simplicidade -,
lembrando de que, por detrás
da convenção e dos
lugares das coisas,
sobra um resto de
tudo. Já peço desculpas:
não pretendo ir tão
longe com minha cômoda
metafísica de bolso.
Nem fazer a doutrina
da lógica deste tempo
inútil por detrás da
trivialidade das coisas,
do dia a dia
e dos amores. Tudo
pode ser tão somente a
banalidade da carne,
da nossa carne. Queria
apenas pegá-lo a mão:
o tempo que preenche
o presente convencional
de tudo é todo
o tempo que temos
diante de nós, numa
estranha inversão de
perspectiva: e quando
este tempo repentinamente
se estreita, não é
nosso futuro que diminui,
é nosso presente que
se esmaece. Parece complicado,
mas não é tanto
assim. Os mil anos
que passam entre um
amor e outro, separado
cronologicamente por míseros
ano e meio, vem
exclusivamente dos infinitos
amores diante de nós,
do tempo inesgotável
para o amor, que,
estando adiante, preenche
o presente. E lá
está ele, o amor
– que é bicho instruído
– realizado por aquela
figura fugidia, instável que,
estando diante de
nós, nos surpreende
e nos fixa. Sua
fonte é um infinito
de tempo e de
possibilidades.
Volto,
enfim, ao assunto: e
quando esse tempo vai
cessando, as possibilidades
escasseando, a imaginação
das coisas repousando
subitamente nas cronologia
dos relógios, das goteiras
e dos aborrecimentos
de fim de mês?
A velhice não é
a morte das coisas,
nem um imenso receituário
de remédio, dores, recomendações
de sono, banho e
chinelos,
mas o fim
de toda uma ordem
da imaginação. Parece
dramático e grandiloquente
– volta meia sucumbo
às minhas tentações
metafísicas – ; a
velhice é apenas
trivialmente, modestamente dramática:
tudo que depende do
futuro para estar presente,
cessa para o velho
o tempo cessa de
correr e se tem
o incômodo da eternidade. Alguém já
disse, mas não custa
repetir: não há
vantagem nenhuma na
velhice. Nem há
como lhe resistir. A ela,
nenhum apelo é válido.
Perdemos algo muito
preciso: o tempo
que preenche o tempo
com tudo de tudo,
com a imagem volátil
de todas as coisas
na forma de planos,
sonhos, amores e
vontades impossíveis.
Repenso
o último parágrafo. Demais, infeliz, quase exagerado (o quase para o exagero
talvez já seja exagero). O velho insulado em um presente fechado, submetido ao tic-tac do relógio de
todas as coisas, até que subitamente... Enfim, a velhice também é lugar do
ressentimento e das paixões tristes.
Detenho-me
um pouco nas paixões triste, por cúmulo de tristeza: acomodado em chinelos,
penso menos nos anos que passaram, mais naqueles que não passarão mais. Estou
ficando velho.
(La aceptación de las proprias limitaciones eventualmente es una sabiduría triste). Diario de la guerra del cerdo, ABC.
(La aceptación de las proprias limitaciones eventualmente es una sabiduría triste). Diario de la guerra del cerdo, ABC.
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