segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Cuesta abajo.

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Diário da guerra do porco – Diário de la guerra del cerdo.

            Medir a idade das coisas não é simples. A ideia de antiguidade pode estar ontem, no último bocejo: quem era aquele ali, escovando os dentes? O mais estranho selvagem, de outras eras, em roupas de dormir?  As medidas das coisas e suas exigências nem sempre são fáceis. Quanto tempo se passou no relógio desde de que ele despretensiosamente começou a medir o tempo? O relógio finge, mas não despreza a passagem do tempo: é uma mecânica consciência de si, que se comunica com a linguagem pecular do tic-tac, tic-tac. Desde a primeira frase? Desde o último minuto? Foram vinte, trinta segundos. E agora, mais um e outro. Difícil saber (as horas contadas, nenhuma soma feita, resta quanto tempo?) o tempo das coisas.
As coisas talvez se impregnem de outro tempo. E o tempo medido e contado em calendários, relógios, aniversários e prestações fica presos nesses aparatos. Os anos conforme o calendário, dia a dia, são uma útil convenção, e não serei eu a negar pela enésima vez a utilidade das coisas, de todas as coisas, salvo as inúteis.  As convenções inventadas, entre tantos utensílios que vestimos e dispomos, e tantos cuidados possíveis com a higiene e a saúde foram certamente bem inventadas. É preciso mais do que aceitar esse mundo dos homens, é preciso lhe dar vivas e celebrar. Os meus pendores revolucionários param por aí, quer dizer, por lá, atrás, bem antes de qualquer revolução, possível, provável ou imponderável. Dizer, afinal, que,  às convenções escapa algo de essencial, é mais um desses clichês verdadeiros, sinal péssimo estilo  e vamos que o tempo passa. Mas lá, nem tudo na vida e nos textos são a pura poesia das esferas. prosa, notícias de jornal e bulas de remédio, com o texto incompreensível dos efeitos colaterais.
            Quanto tempo passou? Nos olhos da minha filha?
            Cada coisa medida e guardada, de repente, pode despertar  de outra era geológica, trazendo notícias de um outra civilização feita de amores e suspiros incompreensíveis, brigas épicas e inesperados pedidos de perdão. Não é só o homem olhando no espelho; é o homem atrás do espelho. Estes repertórios da narrativa íntima das coisas acabam preenchendo um tempo ao oriente do tempo e entre um traço e outro do mostrador do relógio um infinito caminho de tangos, milongas e brigas de amor. O que é isso? De onde vem esse vazio entre os vazios do que se vive muito simplesmente como homem, mulher, funcionário apressado, cartomante, pitonisa, cabeleireira, profeta amador ou dona de casa?
            Não é bem esse meu assunto (já falei isso ou deveria me repetir a esta altura?). Resisto pouco, porém, a que tais digressões. Não é raro lembrar a trivial ocasião em que entre dois ou três anos passam mil ou dois mil anos imaginários e imaginados (a volta, melhorado, do clichê), cheios de tantas idas e vindas, sustos, sopros, ideias brilhantes, sucessos possíveis e impossíveis e meia dúzia de fracassos retumbantes. Poderíamos chamar isso muito simplesmente de vidapor sua falta de simplicidade -, lembrando de que, por detrás da convenção e dos lugares das coisas, sobra um resto de tudo. peço desculpas: não pretendo ir tão longe com minha cômoda metafísica de bolso. Nem fazer a doutrina da lógica deste tempo inútil por detrás da trivialidade das coisas, do dia a dia e dos amores. Tudo pode ser tão somente a banalidade da carne, da nossa carne. Queria apenas pegá-lo a mão: o tempo que preenche o presente convencional de tudo é todo o tempo que temos diante de nós, numa estranha inversão de perspectiva: e quando este tempo repentinamente se estreita, não é nosso futuro que diminui, é nosso presente que se esmaece. Parece complicado, mas não é tanto assim. Os mil anos que passam entre um amor e outro, separado cronologicamente por míseros ano e meio, vem exclusivamente dos infinitos amores diante de nós, do tempo inesgotável para o amor, que, estando adiante, preenche o presente. E está ele, o amorque é bicho instruídorealizado por aquela figura fugidia, instável que, estando diante de nós, nos surpreende e nos fixa. Sua fonte é um infinito de tempo e de possibilidades.  
            Volto, enfim, ao assunto: e quando esse tempo vai cessando, as possibilidades escasseando, a imaginação das coisas repousando subitamente nas cronologia dos relógios, das goteiras e dos aborrecimentos de fim de mês? A velhice não é a morte das coisas, nem um imenso receituário de remédio, dores, recomendações de sono, banho e chinelos,  mas o fim de toda uma ordem da imaginação. Parece dramático e grandiloquentevolta meia sucumbo às minhas tentações metafísicas; a velhice é apenas trivialmente, modestamente dramática: tudo que depende do futuro para estar presente, cessa para o velho o tempo cessa de correr e se tem o incômodo da eternidade.  Alguém disse, mas não custa repetir: não vantagem nenhuma na velhice. Nem como lhe resistir.  A ela, nenhum apelo é válido. Perdemos algo muito preciso: o tempo que preenche o tempo com tudo de tudo, com a imagem volátil de todas as coisas na forma de planos, sonhos, amores e vontades impossíveis.
            Repenso o último parágrafo. Demais, infeliz, quase exagerado (o quase para o exagero talvez já seja exagero). O velho insulado em um presente  fechado, submetido ao tic-tac do relógio de todas as coisas, até que subitamente... Enfim, a velhice também é lugar do ressentimento e das paixões tristes.
            Detenho-me um pouco nas paixões triste, por cúmulo de tristeza: acomodado em chinelos, penso menos nos anos que passaram, mais naqueles que não passarão mais. Estou ficando velho.

(La aceptación de las proprias limitaciones eventualmente es una sabiduría triste). Diario de la guerra del cerdo, ABC.

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