Por algum tempo acreditei que amar era um tipo
de dom que me tornava especial. Sentia-me não apenas conhecedor do amor, mas
infalível praticante (quando o acaso assim me permitia). Sentia-me propenso a
amar muito e melhor que qualquer outro, em minha auto-imagem amorosa e isso
funcionava como um consolo tardio a uma série de inabilidades que acumulava na
vida abstrata que foi se inventando em
mim. Poucos amigos, pouca diversão, pouca alegria, uma espécie de solidão
forçada tornada mania, uma recusa se generalizando, um apelo insistente pelo
não. Não seio de onde veio esse não, como forma de vida, mania e deleite, essa
recusa impertinente, mas de repente ela estava comigo por todos os lugares em que
andava. Mas meu hábito soturno, retraído, não era proposital ou nunca se
pretendeu assim. Todo adulto tímido guarda algum segredo de criança. Meus
segredos de infância são as invenções do adulto: minha casa da infância é uma
lembrança secreta. O quarto grande no final do corredor, piso de taco escuro,
as paredes enormes, brancas, uma muralha para uma criança intromedita. Não sei
se o quarto no final do corredor era o meu ou o dos meus pais, não tenho mais
certezas sobre a disposição da infância naquela casa, ou melhor, a ciência
geográfica de uma criança é sempre literatura fantástica. Ora meu quarto era o
do final, e me lembro do esmalte branco da proteção lateral de minha cama que
guardava meu sonho dos tombos que levaria acordado, ora me lembro de uma fresta
de luz no quarto do meio do corredor, a sensação de não apenas estar ali, mas
de ser ali, ainda um estranho em meu próprio mundo. Minha cama de fórmica,
amarela e branca, o banheiro no começo do corredor. Um dia tomei banho com meu
pai, e pedindo para tomar banho frio, lembro da resposta tímida e prudente de
meu pai, evitando contrariar muito os caprichos de um menino de dois anos, o
primeiro filho, “é muito frio filho”. Insisti e logo confirmei, “é frio mesmo
pai”, não sem um certo maravilhamento pela descoberta do frio, ou redescoberta.
Caminhava pela casa, e lembro-me de a conhecer, mas a lembro estranhamente
escura, passando por meio da escuridão do corredor. Havia um quintal todo
cimentado, mas com uma porção de terra reservada para plantar algo que nunca
foi plantado. Uma janela grande e ampla na sala, por onde entrava a maior parte
de luz da casa. Foi nesse mesmo quintal que aprendi a andar de bicicleta com
alguém de quem já não me lembro o nome e era a sua maneira generoso e
voluntarioso. Lembro-me da primeira sensação de equilíbrio, na bicicleta,
descendo pela faixa de quintal que envolvia a casa, toda a resistência em se
equilibrar, a dificuldade das coisas que é, afinal, o ajuste entre sua própria
natureza e nossa própria natureza. Na cozinha, o aquário redondo com dois
peixes alaranjados, de quem eu cuidava com muita displicência e a porta de
ferro e vidro que dava para o quintal. O segredo da infância é continuar
lembrando-se dela. Não sei, porém, quem era esse menino: na história desse
segredo há apenas um estupor, um susto de ser menino naquela casa que já não
existe mais. Hoje parece que sabia o quão pouco tudo duraria porque tudo
mudaria repentinamente, e nos mudamos sem que eu afinal tivesse me acostumado
com a casa e comigo. Na minha outra casa da infância tudo era diferente. Havia
uma quintal selvagem, sem cimento, povoado de bichos. Meus irmãos recolheram o mistério dos lugares para
o mistério de nós mesmos: não sabia quem eles eram, não sabia quem eu havia
sido.
Custava-me ser assim, de modo que procurava em
mim uma compensação para um mundo hostil que, se me habituara, não me
confortava. Vivia desconfortavelmente, procurava uma saída imaginária para
tantos problemas colocados e assim ia elaborando minhas teorias. A recorrente
passava ou voltava, como quase todas, pela infância. Tenho uma imenso acervo de
lembranças da infância: a infância não me abandona. Viagens com meus pais, a
praça do clube do expedicionário, uma chamada de atenção de minha tia (vai ter
baile no salão?), uma capa de super-herói (eu disposto a salvar o mundo da
maldade). E como há maldade, meu deus. A piscina na escola, todos em algazarra
em volta da piscina, correndo, barulho d'água misturado aos sons desencontrados
das próprias crianças (acaso ainda resta alguma palavra inteligível, que
escutei e já não me lembro? De mim, dos outros, da infância?), e o chamado da
professora: vamos, vamos, vamos. Uma visita a fazenda, uma festa junina e um
parquinho vago, escondido em algum canto da cidade que já não existe mais, mas
tremendamente fantástico e sedutor: alguém sorria para mim enquanto estava na
gangorra e deixava a gangorra e para ir ao cavalinho.
Houve um corte abrupto em minha vida: meus
irmãos nasceram, nos mudamos de cidade, senti-me muito sozinho em meio a um mundo
de repente estranho. Sem tias, sem visitas, sem o entusiasmo da uma família
grande e cheia de defeitos, sem o cúmulo de afetos que a exclusividade me
garantia, foi educado apenas pelos defeitos próximos de meu pai e de minha mãe,
o que talvez me faça muito previsível. Passei pela experiência do ostracismo,
fui sequestrado na infância e algo esquecido e quando alguns anos mais tarde
meu pai me esqueceu na escola, em sentido próprio, tive a confirmação da
incompreensível primeira lição da vida. Que ela pode acabar sem avisar. Todos
podem ir embora a qualquer momento. As luzes se apagam. Nos encolhemos. E resta
apenas uma respiração assustada. Somos todos frágeis. Os segredos da infância
se perdem, os recuperamos e os perdemos novamente.
Com os
ponteiros desajustados padeci da mesma tristeza que minha mãe, ficamos os dois
tristes e sem consolo com a mudança. A propensão à tristeza de minha mãe talvez
tenha alimentado a minha, mas seria demais talvez culpá-la de tudo isso.
Reservo alguma originalidade a minha tristeza porque também tenho certos
orgulhos. A estranheza do mundo começou dessa sucessão de fatos inesperados,
ainda mais para alguém com relativa pouca experiência. No interior do país e do
interior de mim mesmo não via as brincadeiras das outras crianças como um
oportunidade de brincar também. Olhava os vizinhos curioso, fazendo festa,
rindo, brincando, ansioso talvez para que me chamassem, mas com uma certa
indiferença difícil, incompreensível. Sabia que não seria chamado. Via-os com a
nostalgia de uma criança de muitos anos, como se eu fosse uma criança proibida
pela minha tristeza e a de minha mãe, pelos problemas doméstico que em parte
entendia, pela falta que me faziam minhas tias. Olhava as outras crianças do
alto de minha experiência fantástica. Havia fantasticamente crescido e, um
senhor de quatro anos avaliava com certo desdém os outros. A tristeza dessas
sequência de acontecimentos alterou minha vida de criança, a tristeza fez a
minha criança recolher-se e ver-se tão diferente, quase estranha a mim mesmo.
Perdida a espontaneidade, viver como criança foi algo como uma espera por
crescer. Nas viagens de ônibus pedia para me sentar sozinho – sempre sobra
alguém em uma família impar. Já me preparava para minhas possibilidades de
adulto. Eu adivinhava, com uma esperteza ingênua, que crescer seria melhor que
viver interditado e à parte, como vivia então. Mas faltava ainda muito tempo
para isso. O que faria durante, digamos, dez ou quinze anos? Aprendi também a
esperar (o que me cansa, agora que sou velho, porque já esperei demais). Os
velhos desaprendem a esperar porque esperaram muito ou porque já não tem mais
tempo para esperar. Para aqueles que a velhice é só a última espera, sem fama,
sem glória, sem sobriedade, sem conforto, a espera é apressada. O cansaço de
que falo não não é aquele de quem fez algo, realizou algo. Mas o cansaço
estéril das tentativas frustradas. Não estou aqui para falar do óbvio: essa
velhice que me toma o corpo, marca o rosto e denuncia a doença. Estou aqui para
falar das aventuras do que acreditei ser as do amor. O amor é antes de tudo uma
fantasia íntima, uma fantasia de salvação. Amar, ser amado, apaixonar-se é crer
no milagre do outro. E o milagre do outro só pode ser uma fantasia. Sei que
você chama isso de outra coisa (loucura, frustração, erro, doença), mas no
final vai me entender. Não vou falar ainda disso. Ela é o último capítulo. A
velhice que vivo, entretanto, tem sim um último consolo: reconcilio-me com o
menino que fui, olho para o homem que tentei ser. Não há alegria nisso, mas uma
satisfação morna, um conforto quase calculado, uma resignação pacífica. O
menino ainda quer brincar. O menino persevera.
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