terça-feira, 13 de novembro de 2012

Opereta do falso Fernando Pessoa.



Por algum tempo acreditei que amar era um tipo de dom que me tornava especial. Sentia-me não apenas conhecedor do amor, mas infalível praticante (quando o acaso assim me permitia). Sentia-me propenso a amar muito e melhor que qualquer outro, em minha auto-imagem amorosa e isso funcionava como um consolo tardio a uma série de inabilidades que acumulava na vida abstrata  que foi se inventando em mim. Poucos amigos, pouca diversão, pouca alegria, uma espécie de solidão forçada tornada mania, uma recusa se generalizando, um apelo insistente pelo não. Não seio de onde veio esse não, como forma de vida, mania e deleite, essa recusa impertinente, mas de repente ela estava comigo por todos os lugares em que andava. Mas meu hábito soturno, retraído, não era proposital ou nunca se pretendeu assim. Todo adulto tímido guarda algum segredo de criança. Meus segredos de infância são as invenções do adulto: minha casa da infância é uma lembrança secreta. O quarto grande no final do corredor, piso de taco escuro, as paredes enormes, brancas, uma muralha para uma criança intromedita. Não sei se o quarto no final do corredor era o meu ou o dos meus pais, não tenho mais certezas sobre a disposição da infância naquela casa, ou melhor, a ciência geográfica de uma criança é sempre literatura fantástica. Ora meu quarto era o do final, e me lembro do esmalte branco da proteção lateral de minha cama que guardava meu sonho dos tombos que levaria acordado, ora me lembro de uma fresta de luz no quarto do meio do corredor, a sensação de não apenas estar ali, mas de ser ali, ainda um estranho em meu próprio mundo. Minha cama de fórmica, amarela e branca, o banheiro no começo do corredor. Um dia tomei banho com meu pai, e pedindo para tomar banho frio, lembro da resposta tímida e prudente de meu pai, evitando contrariar muito os caprichos de um menino de dois anos, o primeiro filho, “é muito frio filho”. Insisti e logo confirmei, “é frio mesmo pai”, não sem um certo maravilhamento pela descoberta do frio, ou redescoberta. Caminhava pela casa, e lembro-me de a conhecer, mas a lembro estranhamente escura, passando por meio da escuridão do corredor. Havia um quintal todo cimentado, mas com uma porção de terra reservada para plantar algo que nunca foi plantado. Uma janela grande e ampla na sala, por onde entrava a maior parte de luz da casa. Foi nesse mesmo quintal que aprendi a andar de bicicleta com alguém de quem já não me lembro o nome e era a sua maneira generoso e voluntarioso. Lembro-me da primeira sensação de equilíbrio, na bicicleta, descendo pela faixa de quintal que envolvia a casa, toda a resistência em se equilibrar, a dificuldade das coisas que é, afinal, o ajuste entre sua própria natureza e nossa própria natureza. Na cozinha, o aquário redondo com dois peixes alaranjados, de quem eu cuidava com muita displicência e a porta de ferro e vidro que dava para o quintal. O segredo da infância é continuar lembrando-se dela. Não sei, porém, quem era esse menino: na história desse segredo há apenas um estupor, um susto de ser menino naquela casa que já não existe mais. Hoje parece que sabia o quão pouco tudo duraria porque tudo mudaria repentinamente, e nos mudamos sem que eu afinal tivesse me acostumado com a casa e comigo. Na minha outra casa da infância tudo era diferente. Havia uma quintal selvagem, sem cimento, povoado de bichos. Meus  irmãos recolheram o mistério dos lugares para o mistério de nós mesmos: não sabia quem eles eram, não sabia quem eu havia sido. 
Custava-me ser assim, de modo que procurava em mim uma compensação para um mundo hostil que, se me habituara, não me confortava. Vivia desconfortavelmente, procurava uma saída imaginária para tantos problemas colocados e assim ia elaborando minhas teorias. A recorrente passava ou voltava, como quase todas, pela infância. Tenho uma imenso acervo de lembranças da infância: a infância não me abandona. Viagens com meus pais, a praça do clube do expedicionário, uma chamada de atenção de minha tia (vai ter baile no salão?), uma capa de super-herói (eu disposto a salvar o mundo da maldade). E como há maldade, meu deus. A piscina na escola, todos em algazarra em volta da piscina, correndo, barulho d'água misturado aos sons desencontrados das próprias crianças (acaso ainda resta alguma palavra inteligível, que escutei e já não me lembro? De mim, dos outros, da infância?), e o chamado da professora: vamos, vamos, vamos. Uma visita a fazenda, uma festa junina e um parquinho vago, escondido em algum canto da cidade que já não existe mais, mas tremendamente fantástico e sedutor: alguém sorria para mim enquanto estava na gangorra e deixava a gangorra e para ir ao cavalinho.
Houve um corte abrupto em minha vida: meus irmãos nasceram, nos mudamos de cidade, senti-me muito sozinho em meio a um mundo de repente estranho. Sem tias, sem visitas, sem o entusiasmo da uma família grande e cheia de defeitos, sem o cúmulo de afetos que a exclusividade me garantia, foi educado apenas pelos defeitos próximos de meu pai e de minha mãe, o que talvez me faça muito previsível. Passei pela experiência do ostracismo, fui sequestrado na infância e algo esquecido e quando alguns anos mais tarde meu pai me esqueceu na escola, em sentido próprio, tive a confirmação da incompreensível primeira lição da vida. Que ela pode acabar sem avisar. Todos podem ir embora a qualquer momento. As luzes se apagam. Nos encolhemos. E resta apenas uma respiração assustada. Somos todos frágeis. Os segredos da infância se perdem, os recuperamos e os perdemos novamente.
Com os ponteiros desajustados padeci da mesma tristeza que minha mãe, ficamos os dois tristes e sem consolo com a mudança. A propensão à tristeza de minha mãe talvez tenha alimentado a minha, mas seria demais talvez culpá-la de tudo isso. Reservo alguma originalidade a minha tristeza porque também tenho certos orgulhos. A estranheza do mundo começou dessa sucessão de fatos inesperados, ainda mais para alguém com relativa pouca experiência. No interior do país e do interior de mim mesmo não via as brincadeiras das outras crianças como um oportunidade de brincar também. Olhava os vizinhos curioso, fazendo festa, rindo, brincando, ansioso talvez para que me chamassem, mas com uma certa indiferença difícil, incompreensível. Sabia que não seria chamado. Via-os com a nostalgia de uma criança de muitos anos, como se eu fosse uma criança proibida pela minha tristeza e a de minha mãe, pelos problemas doméstico que em parte entendia, pela falta que me faziam minhas tias. Olhava as outras crianças do alto de minha experiência fantástica. Havia fantasticamente crescido e, um senhor de quatro anos avaliava com certo desdém os outros. A tristeza dessas sequência de acontecimentos alterou minha vida de criança, a tristeza fez a minha criança recolher-se e ver-se tão diferente, quase estranha a mim mesmo. Perdida a espontaneidade, viver como criança foi algo como uma espera por crescer. Nas viagens de ônibus pedia para me sentar sozinho – sempre sobra alguém em uma família impar. Já me preparava para minhas possibilidades de adulto. Eu adivinhava, com uma esperteza ingênua, que crescer seria melhor que viver interditado e à parte, como vivia então. Mas faltava ainda muito tempo para isso. O que faria durante, digamos, dez ou quinze anos? Aprendi também a esperar (o que me cansa, agora que sou velho, porque já esperei demais). Os velhos desaprendem a esperar porque esperaram muito ou porque já não tem mais tempo para esperar. Para aqueles que a velhice é só a última espera, sem fama, sem glória, sem sobriedade, sem conforto, a espera é apressada. O cansaço de que falo não não é aquele de quem fez algo, realizou algo. Mas o cansaço estéril das tentativas frustradas. Não estou aqui para falar do óbvio: essa velhice que me toma o corpo, marca o rosto e denuncia a doença. Estou aqui para falar das aventuras do que acreditei ser as do amor. O amor é antes de tudo uma fantasia íntima, uma fantasia de salvação. Amar, ser amado, apaixonar-se é crer no milagre do outro. E o milagre do outro só pode ser uma fantasia. Sei que você chama isso de outra coisa (loucura, frustração, erro, doença), mas no final vai me entender. Não vou falar ainda disso. Ela é o último capítulo. A velhice que vivo, entretanto, tem sim um último consolo: reconcilio-me com o menino que fui, olho para o homem que tentei ser. Não há alegria nisso, mas uma satisfação morna, um conforto quase calculado, uma resignação pacífica. O menino ainda quer brincar. O menino persevera.

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